terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Saúde da População Negra


Saúde da População Negra corre o risco de permanecer negligenciada no Ministério da Saúde


Na contramão de projeto encaminhado pela SEPPIR, secretário do Ministério da Saúde apresentou proposta que reduz importância da Política de Saúde da População Negra

Foi ampla a repercussão do anúncio do projeto de lei de cotas para negros no serviço público feito pela presidenta Dilma Rousseff na abertura da III Conapir, em 5 de novembro. Ocorre que outra medida não menos esperada também foi apresentada, sem, entretanto, receber muita atenção: “Nós vamos criar, no Ministério da Saúde, inclusive por grande demanda da Seppir [Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial], uma instância específica para coordenar as ações voltadas para a população negra”, afirmou a presidenta.


Desde que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) foi aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), em 2006, e oficializada pelo Ministério da Saúde (MS), em 2009, por meio da Portaria n. 992/09, ativistas e especialistas da área têm lutado e dialogado com o MS para que a implementação aconteça. Os resultados, porém, praticamente inexistem; e boa parte da explicação repousa no fato de que essa agenda nunca foi incorporada como prioridade pelo Ministério. Apesar de 70% dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) serem negros (pretos e pardos), a PNSIPN não tem sido tratada como uma ação estratégica pelas secretarias do Ministério e algo indispensável para que a missão do SUS se concretize. Em vez disso, a quase totalidade das ações que tratam da saúde da população negra está sob a responsabilidade do Departamento de Apoio à Gestão Estratégica e Participativa (DAGEP), parte da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP). 




Diante dessas limitações, a SEPPIR, em diálogo com integrantes do Comitê Técnico de Saúde da População Negra, construiu uma proposta de criação de uma Instância de Enfrentamento ao Racismo Institucional e Promoção da Igualdade Racial na Saúde, a ser alocada no Gabinete do Ministro da Saúde; responsável pela implementação, a gestão, o monitoramento e a avaliação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. O projeto foi encaminhado pela ministra Luiza Bairros ao ministro Alexandre Padilha no início de novembro, seguindo para a apreciação do Departamento de Apoio à Gestão Estratégica e Participativa (DAGEP). Esse foi contexto em que a proposta foi anunciada pela presidenta Dilma Rousseff na Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial.

Contraproposta − Na tarde desta segunda-feira (9.12.2013), durante a reunião da Comissão Intersetorial de Saúde da População Negra do CNS, o secretário Odorico Monteiro, da SGEP, apresentou outra proposta na qual a instância permaneceria no DAGEP, dentro da Coordenação Geral de Apoio à Educação Popular em Saúde e Mobilização Social, portanto submetida a essa coordenação, conforme registrado no infográfico abaixo.




A proposta recebeu várias críticas dos presentes na reunião. José Marmo da Silva, coordenador da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, salientou: “Mais do que deixar as coisas como estão, o que já seria condenável, a proposta reduz ainda mais a importância da Política de Saúde da População Negra dentro do Ministério da Saúde. A proposta que construímos em diálogo com a SEPPIR partia justamente do reconhecimento das lacunas institucionais e limitações dos mecanismos atuais de gestão da Política em prover as dinâmicas necessárias à sua efetiva institucionalização”.

Na avaliação de Richarlls Martins, da Rede Nacional Lai Lai Apejo – Saúde da População Negra e HIV-Aids e conselheiro do CNS, “essa proposta vai na contramão do compromisso com a implementação da PNSIPN que o Ministério da Saúde vem reafirmando em vários momentos desde 2006. Pouco adianta afirmar o compromisso e não desenvolver ações que produzam impacto”.

Por sua vez, Jurema Werneck, coordenadora da ONG Criola, que também esteve diretamente envolvida na elaboração da proposta encaminhada pela Seppir, deu mais detalhes sobre o projeto inicial. “De acordo com o que encaminhamos, a instância deve estar localizada no Gabinete do Ministro da Saúde, para que ter condições de ter influência sobre todas as secretarias e níveis de gestão em saúde. Em respeito ao princípio de gestão da transversalidade, sugerimos uma coordenação adjunta sob a responsabilidade da SEPPIR. Para o planejamento e a execução das ações, a instância deveria contar com a assessoria de um Órgão Colegiado composto pelas Secretarias do MS, pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS); pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS); bem como por especialistas e representantes de organizações e redes da sociedade civil ligados às agendas da saúde e do antirracismo”. 


Outro problema apontado por ativistas e especialistas diz respeito ao reduzido tamanho da equipe diante da carga de trabalho necessária para a implementação da PNSIPN e de um plano de combate ao racismo na Saúde. Em vez de 1 coordenador/a, 1 assessor/a, 1 secretário e um corpo técnico formado por consultores; a estrutura mínima prevista era: 1 Coordenador/a, 1 Especialista em Saúde da População Negra, 1 Epidemiologista, 1 Gestor/a público/a especialista em monitoramento e avaliação, 2 Técnicos/as, e 1 Auxiliar administrativo. Caberia ainda garantir a presença de pontos focais em cada Secretaria do MS.

De acordo com a proposta da SEPPIR, a implementação da PNSIPN estaria atrelada à capacidade de a Instância exercer liderança, competência e força de gestão. Isso porque três frentes de ações precisariam ser fortemente desenvolvidas: enfrentamento do racismo no SUS; eliminação das disparidades raciais visíveis na diferença entre os indicadores de saúde de brancos e negros; e realização de ações afirmativas. Essas são entendidas como condições indispensáveis para que a Instância tenha o poder para levar o SUS a se mover na direção das mudanças pretendidas.

Nova reunião no CNS – Nesta quarta-feira (11), às 14h, o tema da Saúde da População Negra será pauta da reunião do Conselho Nacional de Saúde. Para tratar da questão, estão previstas as falas do ministro da Saúde Alexandre Padilha; da ministra da SEPPIR Luiza Bairros; Ubiraci Matildes de Jesus, Coordenadora da Comissão Intersetorial de Saúde da População Negra − CISPN/CNS; e de Jurema Werneck, coordenadora da ONG Criola. A reunião é aberta ao público, e espera-se que a presença da sociedade civil seja capaz de pressionar o governo para que uma proposta mais adequada seja encaminada. O endereço do Plenário do Conselho Nacional de Saúde “Omilton Visconde” é: Ministério da Saúde, Esplanada dos Ministérios, Bloco G, Anexo B, 1º andar – Brasília/DF.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Em defesa da Lei Maria da Penha e para além dela


Em defesa da Lei Maria da Penha e para além dela


Passados sete anos desde a sua promulgação, a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006) inegavelmente caiu na boca do povo. Para o gosto de muitas pessoas e o desgosto de outras tantas – sobretudo tantos −, 98% da população sabe da existência desse instrumento legal, segundo informações apresentadas pelo Instituto Patrícia Galvão e o Data Popular. De conversas entre amigas a tema de samba da Alcione, passando por inúmeros debates públicos e oficinas de sensibilização, o assunto tem ocupado corações e mentes Brasil afora. O aumento vertiginoso de 600% das denúncias registradas por meio do serviço Ligue 180 do governo federal serve como mais uma prova disso. 



Alcione – Maria da Penha, CD De tudo o que eu gosto (2007)


Todavia, como observou a ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), o modus operandi do Judiciário segue figurando como um ponto frágil nesse esforço de combate à violência contra as mulheres. Entre as queixas, fala-se, por exemplo, da demora em expedir medidas protetivas em favor das denunciantes. Não fosse isso suficientemente grave, bem neste mês, fui chamada atenção para outro problema envolvendo a postura de juízes perante casos que saem das delegacias qualificados pela Lei Maria da Penha. Trata-se do arquivamento de denúncias pelo fato de a autoridade não compreender a situação mencionada como exemplo de violência familiar ou doméstica, valendo-se de um entendimento limitado sobre esse conceito.

Não tenho como dimensionar a frequência com que isso tem se dado, mas o relato feito por uma jovem de vinte anos me fez suspeitar de que pode ser mais comum do que eu nem sequer supunha que ocorresse. Sim, vira e mexe, eu ainda me pego subestimando a perversidade e injustiça reproduzidas quando se pressupõe o respeito aos direitos de determinadas pessoas.

Em resumo, eis o que me foi relatado: Por aproximadamente três meses, a moça viveu um relacionamento descompromissado (ficou) com um rapaz poucos anos mais velho. A convivência constante, embora não implicasse um pacto de fidelidade, era o suficiente para manifestações de ciúmes (posse) de ambos os lados. Tudo já ia mal até o rapaz, que nutria esses mesmos vínculos com outras garotas, resolver ridicularizá-la na frente de um grupo de amigos. Isso gerou uma discussão que acabou resultando em agressão física entre os dois. A moça foi, então, à delegacia de polícia e o agente enquadrou o ocorrido na Lei Maria da Penha, enquanto o rapaz buscou se defender alegando que ela teria estragado o carro dele. A agressão física foi comprovada no Instituto Médico Legal, mas a avaria no carro não. Como esse jogo de forças não seria resolvido ali, o caso seguiu para o Juizado. No dia da audiência, que não durou cinco minutos, o juiz perguntou: “Vocês eram namorados ou isso era só um caso?”. Ela se assustou com a pergunta e não disse nada. O juiz prontamente completou: “Ah, isso era um caso. A Lei Maria da Penha não se aplica aqui. Vamos arquivar. Ontem, apareceram dois casos como esse aqui. Os dois foram arquivados também”.

Ao passo que a denúncia da moça era desqualificada, o rapaz era encorajado a reforçar a sua alegação, e assim o fez, afirmando perante o juiz que ele levaria adiante a denúncia sobre os danos em seu carro, jogando na mesa um monte de notas fiscais; e a coisa foi assim encaminhada. Neste momento, a moça aguarda ser convocada para nova audiência no Juizado de Pequenas Causas, quando, em vez de vítima, ocupará o lugar de acusada...



Não deixa de ser no mínimo tacanha a atitude de um juiz alegar jurisprudência para arquivar mais um caso como aquele em virtude de os envolvidos não terem um relacionamento dentro do padrão considerado adequado, mas foi isso que aconteceu. Ocorre, porém, que a Lei Maria da Penha não exclui esse tipo de situação e, portanto, estabelece garantias para que episódios como esses também sejam considerados. Senão, vejamos o conteúdo do artigo 5º, do Capítulo I, sobre as Disposições Gerais, com destaque para o inciso terceiro:


Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Diante do que dispõe a lei, outras inquietações me são suscitadas. Ainda que a maioria dos casos de violência contra a mulher ocorra no ambiente familiar e/ou doméstico, acredito que não se pode ignorar essa outra parte da realidade que o episódio mencionado encerra. A alegação da falta de um relacionamento “sério” não deve servir para legitimar qualquer tipo de agressão. É necessário, portanto, cuidar para que a recorrência desse desfecho não enfraqueça a confiança das mulheres no recurso à lei para se defender. Afinal, sabemos muito bem que o que faz um juiz ou juíza tomar essa decisão é o mesmo que o/a deixa tranquilo/a para protelar a garantia de proteção à integridade física das mulheres que denunciam seus maridos ou namorados, a saber, o machismo. E, na medida em que o racismo e o preconceito de classe atuam de forma articulada nesse cenário, a vulnerabilidade de nós, mulheres negras, tende a aumentar exponencialmente. 

terça-feira, 23 de julho de 2013

Uma carta de amor aberta para o meu filho

Uma carta de amor aberta para o meu filho: sobre luto, amor e maternidade negra
Por Christen Smith
Tradução de Viviane Santiago da Silva

Criar e educar crianças negras – de sexo masculino e feminino – na boca de um dragão racista, sexista e suicida é perigoso e incerto. Se eles/as não podem amar e resistir ao mesmo tempo, eles/as provavelmente não sobreviverão. E em ordem de sobreviver eles devem se desprender/liberar. Isto é o que mães ensinam – amor, sobrevivência… (Audre Lorde, “Man Child” in Sister Outsider, 1984).

Quando eu estava grávida de você, eu tinha certeza de que você era uma menina. Mesmo quando um/a sábio/a atrás do/a outro/a olhava diretamente para a minha barriga enorme e redonda, balançava a cabeça e me dizia: “Não, isso é um menino”, eu não acreditava neles. Eu não poderia me imaginar tendo um menino. Menininhos nunca foram uma parte das minhas fantasias de maternidade. Eu sempre me imaginei como mãe de menina. Uma menina para ser exata: exatamente como minha mãe, a mãe da minha mãe e a maioria das minhas tias. Então, quando seu pai e eu fomos fazer nosso ultrassom de cinco meses de gravidez para descobrir o seu sexo e ter certeza de que você estava bem, eu estava numa jornada de confirmação e não de descoberta.

Eu deitei naquela conhecida mesa de falso couro do médico. Levantei minha camisa e esperei para que a geleia gelada fosse aplicada. Nós dois estávamos tontos de ansiedade. Nas nossas mentes, nós não nos importávamos se você era um menino ou uma menina. Era a excitação de atingir outro marco na gravidez que era eufórico. O médico começou a descrever seu batimento cardíaco, sinais vitais, contar dedos dos pés e das mãos, tudo enquanto nós observávamos você, nadando pacificamente, na tela de projeção. Já treinado na teatralização do processo, o médico esperou até o finalzinho da consulta para perguntar se nós queríamos saber o seu sexo. Nós inspiramos e dissemos: “Sim”. Com olhos brilhantes da certeza de nosso entusiasmo, ele disse: “Tá vendo isso aqui, isso é um pênis, e ali está o escroto dele, você está gerando um menino!” Minha respiração parou momentaneamente e calafrios percorreram meu corpo. Eu forcei um sorriso. Eu já amava você profundamente, mas saber que você era um menino e não uma menina me paralizou de medo.

Quando estávamos saindo do consultório do médico, seu pai olhou para mim e perguntou: “Você está bem?”, como se ele soubesse que minha cabeça estava girando com as emoções que eu estava apenas começando a entender. Eu forcei um outro sorriso, respondi: “Sim, eu estou bem”, e fui ao banheiro para me recompor. Eu lavei meu rosto e tentei sair dessa sensação de vertigem que eu estava sentindo. Mas eu não podia afastar a dor surda de tristeza que eu sentia e não podia entende o porquê. A boa feminista em mim repreendia: “Sexo é uma construção social. Recomponha-se.” Mas a sensação fria permanecia. Quando eu estava saindo da clínica para a calçada ensolarada, a sensação fria se transformou em pânico. Envergonhada, eu tentei esconder isso de todo mundo: seu pai, seus avós e meus amigos. Eu não queria que ninguém soubesse que saber que você era um menino me deu uma sensação de pavor que eu não podia entender ou explicar. Eu comecei a fazer pequenos comentários para a nossa família que davam uma pista do meu sofrimento emocional. Eu poderia dizer coisas como: “Eu não tenho a menor idéia sobre o que fazer com um menino”, ou “Nós apenas não temos nenhum menino em nossa família”, mas minha mente não podia ou não permitia que eu colocasse em palavras o indizível terror que eu sentia.

Eu estava em estado de choque e demorou muito para que eu entendesse o porquê. Foi somente em fevereiro de 2012, depois que você nasceu, essa bela e extraordinária pessoa que você é, e já estava nesse mundo por quase um ano, que eu comecei a confrontar meu segredo vergonhoso. Esse foi o dia em que eu soube que Trayvon Martin tinha sido baleado e assassinado, e ouvi sobre as circunstâncias da morte dele. Quando eu ouvi essas notícias, eu sentei e chorei. Eu chorei por ele. Eu chorei pela família dele. Eu chorei pelas pessoas negras em todos os lugares. Mas, acima de tudo, eu chorei por você.

Eu, uma mãe negra de um menino negro, entendia e conhecia a dor que Sybrina Fulton (a mãe de Trayvon Martin) estava experienciando através de um intenso sentido de empatia diaspórica que atravessava/cruzava o tempo e o espaço. E eu estava petrificada pelo pensamento de perder você, ou ser mais uma mulher negra perdendo mais um filho negro. Novamente, outro assassinato de outra criança negra mal interpretado como um homicídio justificável me forçou a a confrontar o pânico secreto e tendencioso com relação ao gênero sobre maternidade negra que eu tinha carregado comigo desde que eu era uma criança. Por mais irracional que isso pareça, a descoberta de que você era um menino me fez sentir como se você estivesse recebendo uma sentença de morte. Eu sabia naquela época, como eu sei agora, que meninas negras também são desproporcionalmente impactadas pela violência policial, e eu também sabia, como JamilaAisha Brown observa, que essa realidade é invisível e silenciada. Nós nunca devemos esquecer Ayana Stanley-Jones, Reika Boyd, Malaika Brooks, Jaisha Akins e Frankie Perkins, mulheres negras assassinadas e imencionavelmente prejudicadas pela polícia, cujas vidas relembram a sempre tão frequente realidade de violência estatal contra as mulheres negras nos Estados Unidos. E a realidade da violência policial contra pessoas transgênero/a é literalmente inconcebível na nossa socieade, onipresente, mas invisível para a maioria dos que não são parte dessa comunidade.

Entendendo tudo isso, e reconhecendo as óbvias contradições inerentes ao meu medo, eu ainda não conseguia afastar o sentimento de tristeza e desamparo associados ao fato de trazer você a este mundo. Na minha mente traumatizada e irracional, maternar meninos negros era um luto iminente e a empatia que eu sentia por mulheres como Sybrina Fulton, Mammie Till e Laura Nelson tornou isso ainda mais nítido. Mas meus sentimentos não se originaram/nasceram apenas no/do silêncio hegemônico que blinda a real letalidade da supremacia heterrosexista e patriarcal contra mulheres negras e pessoas negras transgêneras. Eles também se originavam dos crus e dolorosos sentimentos de amor que eu tenho por você.

Silenciosamente e quase inconscientemente, por anos, eu tinha desenvolvido um senso de vida e amor que estava sendo moldado por minhas preocupacões com os assassinatos sem sentido de crianças negras que acontecem diariamente nos nossos dois lares: Os Estados Unidos e o Brasil. Entendendo, pesquisando e escrevendo sobre a morte negra, eu me vi paralisada com o medo da perda. Antes de eu me tornar a mãe, eu podia compartimentalizar aquele sentimento e distanciá-lo. Porém, depois que eu me tornei mãe, eu não podia mais distanciar as realidades de violência com as quais eu tinha começado a viver nos meus pensamentos e reflexões diárias. Mesmo quando você crescia no meu útero, eu incoscientemente comecei a tritutar estatísticas na minha mente, numa tentativa de criar um cenário que de algum modo pudesse fazer sua sobrevivência mais provável. Fundamentalmente, eu amava tanto você que eu não podia suportar a ideia de você possivelmente ser tomado de mim pelo “dragão suicida” que é o nosso mundo. Minha esperança de que você fosse uma menina era meu desespero em acreditar que, de algum modo, existiria uma maneira de bater as probabilidades do jogo de roleta russa que é a vida de pessoas negras nas Américas.

Depois de dedicar anos me posicionando pessoalmente e politicamente contra a violência policial (e seu parente próximo, o vigilantismo) contra pessoas negras nos Estados Unidos e no Brasil e traçando a genealogia da tortura e da morte da população negra a partir da escravidão no hemisfério americano até linchamentos, grupos de extermínio e policiamento nas duas nações, eu passei a aceitar que o mundo toma meninos negros de suas mães, frequentemente na frente dos olhos delas, sem nenhum motivo, sem razão, ao caso e ainda assim com uma intenção cruel.

Eu conheci as mães de Canabrava no I Encontro Popular pela Vida e um Outro Modelo de Segurança Pública em Salvador, Bahia, em 2009, após uma centena de policiais civis e militares do batalhão de operações especiais terem invadido o bairro delas e executado sumariamente cinco jovens homens daquela comunidade. Três dos jovens, Edmilson Ferreira dos Anjos (22), Rogério Ferreira (24) e Manoel Ferreira (23) eram irmãos. De acordo com a irmã deles, a polícia invadiu a casa deles, puxaram a mãe deles pra fora e atirou nos meninos enquanto eles estavam assistindo televisão, no sofá e dormindo no quarto. Eu conheci Debora Silva, das Mães de Maio, cujo filho foi uma das 493 pessoas que a polícia matou em São Paulo em 1996, em retaliação às revoltas do PCC. Eu conheci Deise, uma das milhares (sim, milhares) de mães negras cujos filhos foram assassinados pela polícia no Rio de Janeiro nos últimos dez anos, que teve que contratar um investigador particular para encontrar o corpo mutilado de seu filho após ele ter sido assassinado. Nos olhos delas, eu vi a morte em vida que acontece quando a alegria de sua vida é sugada pela supremacia branca. O mesmo olhar eu já tinha visto nos olhos de Sybrina Fulton, nos olhos de Mamie Till e nas fotos de mães, irmãs, filhas e parceiras, longe, nas sombras dos linchamentos nos Estados Unidos, esperando para recolher os restos mortais dos seus entes queridos. Eu lembrei da tia que você nunca conheceu, que perdeu seus meninos para a violência policial e a violência das ruas, mas que tinha mantido suas meninas. Porque eu conhecia mais mulheres negras que tinham sobrevivido à violência policial (mesmo que as suas vidas tenham se tornado uma morte em vida), eu ansiava que você fosse uma menina.

Desde que você nasceu, eu tenho lutado com o terror que eu senti naquele dia em que eu descobri que você era um menino e agora que seu irmãozinho está aqui, minha jornada para superar esse terror tem se tornado mais intensa. Ainda assim, lindamente, misticamente, você tem me ensinado a desmentir os meus medos e apenas amar você, reconhecendo o que Audre Lorde disse muitos anos atrás: “Se [você] não pode amar e resistir ao mesmo tempo, [você] provavelmente não sobreviverá… Para sobreviver, crianças negras na América, devem ser criados para ser guerreiros”(1984:74-75). Então, minha promessa a você é criar você como um guerreiro, porque essa é a única coisa que eu posso fazer. E entender que este é o meu jeito de amar você em cada passo do caminho. Cada dia que você vive e ama, sorri e gargalha, ri e chora, nos seus olhos brilhantes, você carrega a felicidade de Olorum; e eu sou relembrada de que você voltou para lutar mais um dia. Você e seu irmão não são meus, mas um dia vocês vão crescer e se tornar ferozes guerreiros por verdade e justiça.


Christen Smith é professora assistente dos Departamentos de Antropologia e Estudos da África e a Diáspora Africana na Universidade de Texas em Austin. Pesquisa a conexão entre raça, violência e performance nas Américas.


Texto originalmente publicado em The Feminist Wire.

sábado, 20 de julho de 2013

Movimento Negro 19.7.2013

Reunião do Movimento Negro com a 

Presidenta Dilma Rousseff


Brasília, Palácio do Planalto, sexta-feira, 19 de julho de 2013

Relato elaborado pela jornalista Sueide Kintê, 
com colaboração de Ana Flávia Magalhães Pinto




Após uma rodada de discussão pela manhã com a presença da ministra Luiza Bairros, da SEPPIR, e do Chefe da Assessoria Especial da Secretaria-Geral da Presidência da República, Diogo Sant’ana, os participantes listados no fim deste relato tiveram uma reunião com a presidenta Dilma Rousseff, iniciada às 15h.



Abertura: A presidenta Dilma dissertou sobre a contribuição dos negros na construção da nação Brasileira. Afirmou que as condições em que se deu a constituição do país contribuíram para a subjugação da população afrodescendente. Alertou que a história da população negra não está nas escolas, e que, até ela, só havia acessado informações sobre o legado de resistência dessa população em seu curso de pós-graduação. Ressaltou que tal realidade é inadmiscível.

Em seguida, fez um panorama do avanço das políticas públicas para população negra no Brasil nos últimos dez anos. Disse que considerava um avanço importante o reconhecimento das terras quilombolas no início da gestão do presidente Lula, e que essas eram comunidades tão invisíveis para o governo que a metodologia inicial de mapeá-las teve de se valer do programa Luz para todos, pois, entre a maioria dos territórios onde faltavam serviços de atenção básica como saneamento e energia elétrica, estavam os quilombos.



A presidenta falou ainda que considerava um avanço a instituição de cotas raciais nas universidades federais, a realização das conferências de promoção de igualdade racial, as políticas de transferência de renda que têm beneficiado as populações pobre e negra, e, por fim, falou dos cinco pactos do governo federal: 1. Responsabilidade fiscal, 2. Plebiscito/Reforma política, 3. Saúde, 4. Mobilidade e 5. Educação. Quanto a isso, pediu o apoio das entidades negras ali presentes no sentido de contribuir para o fortalecimento da agenda em nível nacional.


Mais uma vez saudou os presentes e passou a palavra para nossos representantes.


Primeira Intervenção nossa: O primeiro a falar foi Edson Santos, diretor da Unegro, organização que tem cadeira no CNPIR. Ele discorreu sobre a reforma política, disse que a organização da qual faz parte realizou em 2012 uma pesquisa nas câmaras de vereadores, de deputados e no senado brasileiro para fazer um mapeamento da presença de parlamentares negros e que o resultado da pesquisa foi alarmante, por constatar a baixíssima representação desse segmento populacional nesses espaços do Legislativo. Pontuou com a Presidenta Dilma que não seria possível fazer reforma política sem assegurar condições equânimes de participação da população negra.


Segunda Intervenção nossa: A segunda pessoa a falar foi Flavio Jorge, da Conen, organização que também tem assento no CNPIR, que fez um apanhado das questões que tínhamos elencado na carta protocolada à presidência e discorreu sobre a importância das questões assinaladas. Deu um panorama da atuação das organizações de movimento negro no brasil, e ressaltou a importância dessas no processo de conquista de direitos. Pontuou a importância daquele encontro não se encerrar ali e pediu que a presidenta Dilma comprometesse os ministros encaminhando nossas solicitações, uma a uma, para cada pasta citada.


Terceira Intervenção nossa: O terceiro a falar foi o conselheiro do CNPIR pela Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Arilson Ventura, que leu um manifesto onde dizia que, enquanto o poder público tinha mapeado cerca de três mil comunidades quilombolas, nós já sabíamos da existência de números que extrapolavam mais do que o dobro do relatado. Afirmou novamente que os serviços básicos de infraestrutura não passam por esses territórios, conclamou a presidenta a se posicionar no que diz respeito a briga contra os latifundiários e fez denúncias da violência cometida pelo próprio Estado em situações de conflito com estas comunidades.


Quarta Intervenção nossa: A quarta pessoa a falar foi a conselheira do CNPIR Kika (Valkiria Souza) pelo Centro de Africanidade e Resistência Afro-brasileira (CENARAB) , que defendeu o Estado laico, falou das inúmeras violências sofridas pelo povo de santo, criticou o fortalecimento das igrejas neopentecostais por meio do Estado, falou da vulnerabilidade da mulher negra no  âmbito social e pontuou que este é o grupo mais acometido por violências no país. Denunciou que o genocídio da juventude negra, na medida em que ceifa a vida dos homens jovens, atinge a organização da vida de muitas outras mulheres, mães,  filhas, avós, esposas, namoradas, vítimas indiretas desses crimes. Por fim, apresentou todas as mulheres que estavam no recinto e fez questão de afirmar a autonomia e o protagonismo das mulheres negras nos processos de lutas históricas do país.


Quinta Intervenção nossa: A quinta pessoa a falar foi o conselheiro Clédisson Geraldo dos Santos Júnior, do Coletivo Nacional de Juventude Negra - Enegrecer,  que fez um panorama da participação dos jovens negros na construção da democracia do país. Discorreu sobre as brechas do programa Juventude Viva, denunciou o auto de resistência, apelou para que a presidência se pronunciasse contra a redução da maior idade penal e defendeu a desmilitarização da polícia.


Sexta Intervenção nossa: A sexta pessoa a falar foi Ana Flávia Magalhães Pinto, integrante do Coletivo Pretas Candagas e da Campanha A Cor da Marcha, que discorreu sobre Comunicação, Educação e Saúde. Saudou a memória de todas as pessoas negras que historicamente lutaram, as que atualmente lutam e as virão para fortalecer o combate à desigualdade racial no Brasil e no Mundo. Apresentou a carta protocolada na Presidência e defendeu mais uma vez a importância do encaminhamento das solicitações ali registradas. Denunciou o apagamento dos sujeitos históricos negros na luta por cidadania, desde o período da Indepenência. Defendeu a criação de uma lei de mídia democrática, de modo a fortalecer a agenda de democratização da comunicação e a garantia de acesso e participação da população negra nos meios de comunicação. No item Educação, defendeu a criação cotas em programas de bolsas para estudantes negros na graduação e na pós-graduacao; o estabelecimento de uma ação afirmativa pelo fortalecimento da inserção de estudantes negros no Programa Ciências sem Fronteiras. Alertou para a urgência de uma ação no MEC voltada para o mapeamento e a divulgação das recentes pesquisas que tratam das formas de resistência negra no período escravista e no pós-abolição.  Defendeu o real fortalecimento institucional da implementação da Lei n. 10.639. Quanto à Saúde, alertou para importância estratégica de fortalecimento institucional da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, na medida em que 70% dos usuários do SUS são negros. As tentativas de desmantelamento do SUS, portanto, devem ser enfrentadas como uma das mais ferozes demonstrações de Racismo Institucional. Por fim, reafirmou a urgência da regularização e fortalecimento dos programas de proteção a testemunhas e dos programas nacionais de defensores/as de direitos humanos.


Outras Intervenções:
* Ivanir dos Santos (CEAP) falou do descaso do Estado com as religiões de matrizes africana e  criticou a atenção que dada às igrejas evangélicas. Convidou a presidenta Dilma a estar, pelo menos no café da manhã que antecede a 6ª Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, que ocorrerá no Rio de Janeiro no dia 8 de setembro.


* Frei Davi (EDUCAFRO) reclamou da ausência de cotas nos serviços públicos e pediu a ampliação das cotas para os cursos de medicina e direito.

Depois dessas falas a palavra retornou para a presidente Dilma que assumiu que todas as denúncias feitas pelo grupo eram pertinentes. A presidenta pontuou que, apesar dos avanços o Brasil ainda é um país racista incapaz de dar a resposta que a população negra precisa. Disse que esse governo deu os primeiros passos, mas que ainda há muito o que se fazer.


Encaminhou as demandas específicas para os ministros presentes Gilberto Carvalho (Secretário Geral  da Presidência da República) e Aloízio Mercadante (Ministro da Educação), afora a ministra Luiza Bairros, da SEPPIR. Falou do estado de alerta que ficou quando teve acesso aos dados de violência no Brasil e encaminhou para que a ministra Luiza Bairros estabelecesse em articulação com a ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos, um fórum permanente de combate ao genocídio da juventude negra. Se colocou contra a redução da maior idade penal e relatou que, em conversa com o presidente do STF, pontuou que essa proposta visa a atingir e criminalizar pobre e negros. Também manifestou discordância em relação à aprovação da PEC 215, uma vez que se trataria de uma medida inconstitucional.


Falou que aceitava o convite de ir até a caminhada do povo de santo do Rio de Janeiro e pediu ao ministro Gilberto que priorisasse o evento na sua agenda. Falou que vai encaminhar com qualidade o decreto da Seppir instituindo cotas nos serviços públicos. Agradeceu a presença de todas/os se despediu passando a palavra para o ministro Mercadante para que ele desse um retorno sobre os demais pontos.


Aloízio Mercadante: Expôs uma série dados estatísticos e de ações que o MEC tem desenvolvido quanto à Lei 10.639 e à inclusão de estudantes negros no ensino superior; e marcou uma reunião setorial prevista para a próxima sexta-feira, com o objetivo de debater as questões levantadas na reunião.


Gilberto Carvalho: Sinalizou para a abertura da Secretaria Geral para agendar as reuniões com os outros Ministérios citados na carta, além dos Ministérios do Meio Ambiente e  do Planejamento.

Estiveram na reunião:

  1. Ana Flávia Magalhães Pinto - Coletivo Pretas Candangas / Campanha A Cor da Marcha
  2. Angela Maria da Silva Gomes - CNPIR
  3. Arilson Ventura - CONAQ / CNPIR
  4. Cida Abreu - Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do PT
  5. Cledisson Geraldo dos Santos Júnior - ENEGRECER / CNPIR
  6. Edson França - UNEGRO / organização com assento no CNPIR
  7. Estela Maris Cardoso - Fórum de Mulheres Negras / CNPIR
  8. Flávio Jorge - CONEN / organização com assento no CNPIR
  9. Frei David - EDUCAFRO / CNPIR
  10. Helcias Roberto Paulino Pereira - APNs
  11. Ivanir dos Santos - CEAP / organização com assento no CNPIR
  12. João Carlos Borges Martins - ANCEABRA
  13. José Vicente - Faculdade Zumbi dos Palmares
  14. Marcos Rezende - CEN
  15. Maria da Conceição Lopes Fontoura - Maria Mulher / AMNB / CNPIR
  16. Paulino de Jesus Cardoso - ABPN / CNPIR
  17. Sueide Kintê - Instituto Flores de Dan / Articulação Mulheres & Mídias Bahia
  18. Valdecir Pedreira do Nascimento - Instituto Odara / CNPIR
  19. Valkiria de Sousa Silva - CENARAB / CNPIR

terça-feira, 2 de julho de 2013

Marcus Bookstore

A mais antiga livraria negra existente nos EUA corre o risco de fechar

Por mais de 50 anos, Marcus Books tem servido como uma biblioteca e um centro cultural 






No contexto de um processo racista de gentrificação, um dos lugares mais mágicos em que já estive corre o risco de fechar suas portas. A  família Johnson mantém a livraria Marcus Books há três gerações e caminha para a quarta. 



A fim de dar uma contribuição para a luta pela permanência da livraria naquele que já foi um dos maiores bairros negros dos EUA, traduzi a petição e peço para que quem se solidarizar assine também. 


"Marcus Books é a mais antiga livraria de propriedade negra no município. Ela está localizada na Fillmore Street, em São Francisco desde 1981. A livraria atualmente enfrenta ameaça de despejo.

Depois de um empréstimo predatório, a livraria de San Francisco estava sob ameaça de encerramento. O edifício foi vendido no tribunal de falências para os investidores imobiliários Nishan e Suhaila Sweis, que possuem uma empresa de táxi e são especializados em encontrar imóveis em dificuldades para aproveitar oportunidades de investimentos.

Westside Community Services, uma agência estabelecida no Western Addition, que tem parceria com a Marcus Books para prestar serviços durante muitos anos, ofereceu-se para recomprar o imóvel da família Sweis, a fim de manter a livraria em seu local atual. “Fizemos uma boa oferta, acima do preço de compra”, disse Mary Ann Jones, Diretora Executiva da Westside. “Esperamos que os Sweis aceitem e que entendam o que uma perda incomensurável seria a saída forçada Marcus Books daquele lugar."

Marcus Books já recebeu milhares de personalidades como Oprah Winfrey, Patti Labelle, James Baldwin, BB King, Rosa Parks, Toni Morrison, e Malcolm X. Antes de Marcus Books, a loja era do Jimbo Bop City, um clube de jazz que recebeu grandes nomes musicais e é em grande parte responsável pela Fillmore Street ser chamada de “Harlem do Oeste”.

Estamos pedindo a família Sweis para preservar este legado com a venda do imóvel para Westside Serviços Comunitários."

O site da Marcus Books: http://www.marcusbookstores.com/


quinta-feira, 27 de junho de 2013

Mulheres Negras

Do trágico ao épico: a Marcha das Vadias e os desafios políticos das mulheres negras


No último sábado, 22 de junho, a Marcha das Vadias ocupou ruas e espaços do centro de Brasília, com a palavra de ordem: “Se ser livre é ser vadia, então somos vadias!”. Segundo estimativas oficiais, cerca de 4 mil pessoas compareceram ao protesto. Dias antes, a ativista negra Maria Luiza Júnior havia me convidado a estar com ela naquela manifestação em que, como “Mãe de Preto”, carregaria um cartaz com a mensagem: “Brasil, troque sua polícia racista por uma política humanista. Dê um basta ao genocídio da juventude negra!”. Declinei do convite, explicando que não iria por razões pessoais e em sintonia com a decisão tomada pelo Coletivo Pretas Candangas, do qual faço parte.

Já no dia da Marcha, cheguei a encontrar no Facebook uma fotografia de Luiza levantando o seu cartaz no meio da multidão, o que me deu uma ponta de alegria por saber que um tema importante para muitas mulheres negras se fez presente de algum modo. Qual não foi a minha surpresa quando a mesma Luiza compartilhou com alguns amigos um vídeo sobre um episódio lamentável ocorrido também na Marcha e que a fez deixar a atividade antes do fim. Era o registro do momento em que um homem negro, usuário de muletas para compensar a falta de uma perna, talvez um morador de rua e mentalmente alterado se posicionou à margem da Marcha fazendo gestos obscenos. A ação gerou uma reação instantânea. Um grupo de mulheres quase todas brancas fez um cerco a ele, coagindo-o com gritos, buzinas, cartazes, sem falar na quantidade de fotógrafos a registrar o fenômeno. Maria Luiza Junior também apareceu imediatamente, mas não para fazer coro com as demais. Ela tentava proteger o moço com aquele cartaz sobre extermínio da juventude negra, mas sua atitude não foi entendida nem por ele, nem pelas demais.


Confesso que aquelas cenas me deixaram atônita num primeiro momento, mas pouco depois resolvi compartilhar minha angústia com Janaína Damaceno, uma amiga muito sábia. Conversamos rapidamente a respeito e, horas depois, ela lançou o seguinte questionamento também na rede social: “Alguém explica isso: como mulheres em grande parte brancas e universitárias, hostilizando e perseguindo um homem negro, pobre, deficiente e com problemas mentais pode ser igual a luta contra o machismo? Sério que ele personifica o inimigo? A luta antimachista exclui o bom senso? Ele fez algo extremamente grave que não foi captado pelo vídeo?”.

Divulguei aquela reflexão e uma interessante discussão foi desenvolvida. Jurema Werneck prontamente entrou em contato com a organização da Marcha e obteve a resposta de que “esta cena − e mais uma − foi fruto da ação da comissão de segurança da Marcha contra os agressores. E, neste caso, os agressores. A organização da Marcha deve soltar uma nota ainda hoje sobre este episódio”. Enquanto seguíamos o debate e aguardávamos a nota, que até a tarde de quarta-feira (26) ainda não tinha saído, alguém chegou a ponderar se o vídeo teria mesmo mostrado tudo o que acontecera. O relato da própria Maria Luiza Júnior, entretanto, confirmou o que para muitas já era óbvio: “Vou falar como testemunha ocular. O rapaz simplesmente levantou a camisa, porque na marcha havia pessoas de peito nu. Ele estava exibindo o ‘tanquinho’. Depois dos primeiros gritos, ele deu as costas e saía em direção contrária à marcha. Em seguida, fotógrafos e povo cercaram-no e ele novamente levantou a camisa. Eu que estava próxima, temendo que a bermuda amarrada com cordão baixasse expondo sua genitália, coloquei o cartaz em cima. Ele reagiu batendo no cartaz. Tendo me ouvido pedir que não continuasse com aquilo, gesticulou para que me afastasse. Daí eu saí da marcha porque fiquei deveras perturbada com o racismo exacerbado das manifestantes que acorreram para ele como urubus em busca de carniça. No vídeo está claro que ele está caminhando ou tentando ir no sentido contrário da marcha. A filmagem acaba quando ele atira a muleta em direção ao estacionamento sem pessoa alguma. Eu estava lá, e isto está no vídeo. O que faltou ao vídeo foi a minha indignação com a agressividade daqueles que gritavam com o rapaz e ainda o impediam de sair da confusão”.

A julgar pelos posicionamentos enviados, o episódio tem tido tamanha repercussão por condensar uma série de insatisfações que há muito perturbam várias mulheres negras que se colocam em diálogo com organizações feministas de maioria branca. Aline Maia, por exemplo, ponderou: “Será mesmo possível construir um feminismo, com mulheres brancas, que pautem nossas demandas? Tenho muitas dúvidas! Porque, na experiência que tenho, vejo que na maioria das vezes é sempre isso que acontece: expomos nossas questões, expomos nossos corpos negros, nossas paixões e dores e a massa branca se lixa; e no final diz: ‘Viva a solidariedade feminina’”. O posicionamento de Carla Akotirene é tão instigante quanto: “Ando repensando essas articulações com movimentos de mulheres que combatem as violências de gênero a partir de outras modalidades de opressão contra corporeidades negras, contra os racialmente excluídos e querem se firmar revolucionárias”. Para Aline Matos, o acontecido encaixa-se nas problematizações feitas por Audre Lorde: “A recusa institucionalizada da diferença é uma necessidade básica para a economia do benefício que necessita da existência de um excedente de pessoas marginais”.

Quando as primeiras edições da Marcha das Vadias / Slut Walk aconteceram, em 2011, eu estava no período de doutorado sanduíche nos Estados Unidos. Era uma duplamente outsider, mas tentei acompanhar o que acontecia simultaneamente aqui e lá. Como a experiência de ser tratada negativamente como vadia é algo que faz parte da experiência das mulheres negras, a proposta não me soou de todo descabida. Porém, logo surgiram alguns questionamentos feitos por mulheres negras de ambos os países. O primeiro deles lembrava que tal tratamento não nos tem sido reservado apenas quando saímos às ruas com roupas curtas. A negação do nosso direito ao próprio corpo independe das roupas que usemos. O segundo era o fato de muitas meninas, jovens e adultas negras das periferias e dos guetos não considerarem uma transgressão sair para qualquer lugar de shortinho e blusinha ou roupas justas. Elas fazem isso corriqueiramente e soa até estranha a agitação por algo tão banal. Por outro lado, a proposta poderia fazer sentido porque o puritanismo nunca nos salvou.

Seja como for, não participei de nenhuma atividade de rua. A razão disso se deu pela forma como esses questionamentos foram tratados pelas feministas brancas organizadoras das edições da Marcha das Vadias / Slut Walk naquele momento e posteriormente. Ao retornar dos EUA, não foi difícil manter minha decisão, pois os relatos de ativistas negras reforçaram a minha dificuldade de aproximação e crença no diálogo produtivo com aquele feminismo. Como relatou Paula Balduino de Melo no debate virtual dos últimos dias: “Nós, Pretas Candangas, estivemos em uma reunião de organização da Marcha das Vadias no ano passado (ou retrasado, me ajude a lembrar Juliana Cézar Nunes), a convite de algumas organizadoras. Junto com outras mulheres negras presentes, posicionamos nossas divergências quanto à marcha. Divergências de princípio. Falamos sobre como temos de enfrentar cotidianamente a sociedade hegemônica para mostrar que não somos vadias, que não temos a ‘cor do pecado’. Falamos que não queremos reivindicar o direito de ser vadias, mas sim de ser médicas, advogadas, doutoras. O fato ocorrido dentro da marcha este ano reforça as diferenças”.

Mais uma vez diante desses relatos, penso que a facilidade com que aquele homem − que visualizei como a personificação de um Saci trágico − foi transformado no alvo da catarse das manifestantes está diretamente associada à dificuldade que as feministas brancas organizadoras da Marcha têm de entender e incorporar os questionamentos colocados pelas mulheres negras, feministas ou não. Falamos, recebemos um sorriso amistoso de “Eu vejo você”, e a coisa segue sendo feita de acordo com a vontade delas, como se expressassem a certeza de que “Isso que vocês dizem pode ser interessante, mas o que estabelecemos desde o exterior é mais”. Afinal, a Marcha das Vadias tem alcançado ampla legitimação e, portanto, deve ser tida como uma decisão acertada e ponto final.

Não há dúvida de que aquele homem foi infeliz e insensato em suas ações, a ponto de colocar em risco até mesmo a própria integridade física já degradada. Mas alçá-lo à condição de “O agressor”, isso já me parece no mínimo emblemático do que não se conseguiu avançar por meio de debates quase sempre exclusivos a GTs de Gênero e Raça. Mesmo sabendo das limitações não intencionais, não era isso que esperava de pessoas que se dizem simpáticas às dores dos loucos, usuários de droga, mendigos, etc. A sensação é de que os representantes da escória são super bem vindos desde que se comportem do jeito estabelecido pela esquerda branca e classista.

Não estou com isso pondo em xeque a legitimidade do feminismo em si ou a viabilidade de uma luta coletiva. Trata-se apenas de mais uma tentativa de deslocar a centralidade confortável do feminismo branco, mantida ao longo de décadas, algo que o permite exercer o seu poder à revelia das experiências de outras mulheres, com destaque neste caso para as negras. Digo isso porque uma coisa que dificilmente entra na cabeça de várias de nossas interlocutoras é a necessidade que nós, mulheres negras, temos de defender a existência dos homens negros. Não falamos apenas do pai opressor. Pela nossa história, convivemos também com os registros do avô escravizado, do pai encarcerado, do irmão desempregado, do filho executado, todos pagando o preço de ser tidos como vadios!

Felizmente, mesmo num momento delicado como esse, há pessoas que buscam romper com os privilégios que desfrutam por serem brancas, expõem os erros de gente do seu próprio grupo sociorracial e se colocam para um debate franco conosco, a exemplo da professora Edlene Silva, que disse: “Lamentável!!!! Estava falando sobre a questão gênero, raça e movimento feminista numa palestra que dei no sábado para professores do GDF. Tem questões identitárias no movimento feminista que datam do século XIX, desde o sufragismo que ainda são tão atuais, infelizmente”. Ou o também professor Alexandre Magno, quando expôs suas reflexões: “Algumas feministas dirão que a ação das mulheres foi corretíssima, que aquele lugar era o lugar de fala delas e que seus gritos de liberdade seriam a única fala. Fiquei imaginando a mesma situação por outra óptica, a de um homem negro, pobre, deficiente físico, possivelmente sem instrução, atordoado por aqueles sinalizadores sonoros, cheios de gás e bem próximos ao ouvido dele, que de repente depara com as falas estampadas nos cartazes e que rapidamente, talvez pela sua compreensão de mundo e construção do modelo sexista, direcionou toda aquela fala ‘ao falo’. Será ele o inimigo? E a rua, que provavelmente ele habita todos os dias, o lugar a que foi destinado, separado, a sobra, não como o lugar masculino, mas o da exclusão (de tantos negros/as excluídos/as), agora tem dono/a? Limpem a rua, saiam do caminho que marcha vai passar... Mas uma vez aquele homem negro, sem uma das pernas, sem apoio, não tem lugar. Que fórmula mais maluca de se lutar por equidade! Contra o machismo, o racismo”.

Quando junto tudo isso, aquelas imagens do vídeo assumem dimensão épica, condensam uma série de violências contra as quais nós negras e negros temos batido e nos debatido. A essa altura do campeonato, se a nota da organização das Marcha das Vadias chegar, servirá apenas como mais um registro importante para nossas reflexões sobre essa instável parceria entre feministas brancas e mulheres negras. O que disserem não apagará o que aconteceu na Marcha. O antirracismo já é palavreado fácil, mas segue sendo uma prática difícil. Eis o lugar onde estamos. Para onde vamos? Isso depende do caminho que todas e todos estiverem realmente dispostas e empenhados a trilhar.


* Este texto foi originalmente publicado na página das Blogueiras Negras e reproduzido na página do Coletivo Pretas Candangas.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Sobre a suspensão dos editais para artistas e produtor@s negr@s do MinC


Manifesto do Coletivo Pretas Candangas, Latinidades e Griô contra a violência do racismo na gestão da cultura brasileira




Estamos há dois meses da VI edição do Latinidades – Festival da Mulher Afro-Latino Americana e Caribenha 2013. Uma louca correria por agregar valores aos temas e atividades, reunir redes, coletivos, instituições, grupos, viabilizar a vinda de pessoas que partilham com a gente a caminhada e também das que não caminharam com a gente ainda. As que chegam para o debate, as que vêm pelas apresentações artísticas e despertam para os debates. Ao mesmo tempo, lançar a publicação do ano passado, produzir cada espaço e, o mais difícil, sempre: captar recursos para fazer com que o projeto, além de trazer nossa militância, venha com a qualidade e porte que sempre prezamos em todos os sentidos. Este ano, em especial, estamos muito felizes por trabalhar com um tema que nos é muito caro: Arte e Cultura Negra – Memória Afrodescendente e Políticas Públicas.

Em meio a tantos debates importantes e necessários relacionados ao tema, sempre está a pauta do empreendedorismo negro, o fomento, o respeito aos nossos saberes, as recorrentes políticas brancas para a nossa cultura negra. De forma que estávamos desde março ansiosas pelo resultado do edital para artistas e produtor@s negr@s, lançados pelo Ministério da Cultura. Primeiro porque acompanhamos o processo do edital e vibramos pela vitória de finalmente ter conquistado esta importante ação afirmativa voltada para a cadeia produtiva da cultura negra. Também porque tínhamos esperança de uma vaga, afinal não é todo dia que temos oportunidade de escrever e apresentar uma proposta a uma banca que considere nossas demandas e saberes. Sabemos de muitas propostas importantes encaminhadas, pelo que sabemos foram mais de duas mil.

Hoje, é com muita tristeza e indignação que recebemos a notícia de suspensão dos editais pela Justiça Federal, com o entendimento de que eles representam uma prática racista. Abrindo a notícia para entender mais sobre o processo, passava pela cabeça que fosse um trote ou coisa do tipo. Sabemos e vivemos a realidade da falta de políticas e instrumentos de fomento para as nossas produções, mas ainda não queríamos crer em tamanho retrocesso. Racismo institucional, racismo puro, racismo!

A decisão veio do Juiz José Carlos do Vale Madeira, da 5ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão e foi publicada no Diário Oficial de 20/05/013. Pensamos ser impossível. O MinC, com muita competência já abriu editais para cultura cigana, idosos, culturas populares, indígenas, crianças, pessoas com deficiência, hip hop, mas nunca se deu tamanha polêmica. Respondemos a várias agressões, até mesmo em fóruns de cultura, pessoas que acreditam defender a liberdade e a fruição dos bens culturais, mas ainda não compreenderam a dimensão do racismo que existe dentro delas. E a despeito de qualquer polêmica, nunca houve suspensão desses editais.

Certa vez a ativista, filósofa e nossa mestra Sueli Carneiro afirmou que tudo o que existe de mais popular e erudito no Brasil diz respeito à cultura negra. De que forma está tratada esta cultura em termos de políticas públicas? Como propor e garantir que os saberes orais e ancestrais sejam considerados nos editais, chamadas públicas e outras linhas de fomento e incentivo? Como garantir que as manifestações negras sejam vistas para além da folclorização e do exotismo? Que pesquisas temos com indicadores relacionados à economia da cultura afro-brasileira e afro-latina? Como esta cadeia promove, formaliza e agrega atrizes e atores negros? Qual a melhor forma de inserir no mercado de trabalho e tirar da informalidade agentes da cultura negra? Quais programas e projetos preveem capacitação nas áreas relacionadas à cadeia produtiva da cultura e que podem nos atender? Que linhas de crédito específicas temos para empreendedoras e empreendedores negros e que trabalham com cultura negra?

Diante de tudo isso, resolvemos nos manifestar abordando o tema em 2013 e agora, de forma indignada pela suspensão dos editais. Ao mesmo tempo por revolta, vendo mais uma vez o racismo que impede o Brasil de avançar, e em apoio ao Ministério da Cultura, Seppir e Fundação Palmares, para que neste momento estejamos juntas e juntos. É momento mais uma vez de recorrer, momento de mais uma batalha, na qual precisamos nos manifestar, ocupar as ruas, as audiências, nos movimentar, criar mais um marco de luta e de vitória.

Em 2011 nos manifestamos com um texto que reproduzimos aqui. As mesmas angústias. Temos muita caminhada pela frente, caminhantes!!!


Deu branco nas políticas culturais

Abre edital. Para saber, geralmente, tem que fazer parte um circuito seleto. Abre edital, uma mãe de santo que confere e-mail uma vez por semana recebe a informação. Não entende muito. Faltam dois dias. Pede ajuda. Ela faz uma rede, passa pros grupos de capoeira, que passam pros de percussão. O movimento cultural negro se agita, fóruns multiplicam a oportunidade. O correio nagô faz o serviço. A negrada se ouriça, quer participar, levar a cultura afro-brasileira pros palcos, ser remunerada. O jogo é pesado: tem que ter CNPJ, saber elaborar projeto, fazer inscrição online, ter nota fiscal para comprovar antigos cachês que nunca foram pagos, contratos que vão ser analisados pelo Ministério Público. E se você tem tudo isso concorre para projetos de pequeno porte, tendo em vista os valores de aporte.

O terreiro não tem documento. A capoeira não tem Ordem dos Músicos (nem tem que ter). Mestras e mestres griôs não tem o valor da oralidade ancestral considerada na maior parte dos editais. As comunidades quilombolas não estão em dia com o ECAD. Nós sempre criamos, mas os direitos autorais não entram nos nossos bolsos. Para tradições negras, regras brancas, já disseram. A cultura do sinhôzinho ainda é a que tem fomento. Quem tem os mecanismos, leva. E daí vem o papo de ter que aprender, é fato. Mas eu me pergunto pra que a mestra de capoeira vai querer ter OMB…e por aí vai a nossa batalha: qual edital vai considerar nossas especificidades? Porque também queremos jogar de acordo nossas preciosidades e referências.


Após várias lutas parece que estamos quase que no mesmo ponto. É como o GOG diz: “o opressor ameaça recalçar as botas” quando se fala em ações reparatórias mínimas.


Distrito Federal, 21 de maio de 2013