segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo por Christen Smith

Charlie Hedbo: Devemos nos consternar com os mortos sem confundir racismo como ideal democrático*


Christen A. Smith** 


O recente ataque contra a sede da revista satírica francesa Charlie Hebdo foi devastador, evidenciando tempos violentos sob a sombra traiçoeira do terrorismo. Devemos tomar cuidado para não atrelar nossa tristeza com o ódio, a vingança e mais violência, ao confundir nosso racismo como sendo nossa democracia.


Simplificando: desenhos políticos representam liberdade de expressão, mas eles nem sempre são inocentes e inerentemente democráticos. Embora as charges satíricas do Charlie Hebdo sejam dirigidas a uma ampla faixa de pessoas e questões políticas, não podemos negar a histórica relação existente entre caricatura racista e violência racial. Fazer isso, ouso dizer, seria minar o próprio espírito do debate saudável e controverso defendido pelo Charlie Hebdo.



Na verdade, este ataque é uma lembrança dolorosa de que momentos como esses muitas vezes envolvem nações democráticas em tiradas racistas de animosidade e vingança fomentadas por xenofobia; neste caso, pintando todos os muçulmanos como terroristas.

De fato, o sentimento anti-islamismo tem aumentado em toda a Europa. Logo após os ataques, a política conservadora francesa Marine Le Pen, líder do partido Frente Nacional, de extrema direita, previsivelmente culpou o Islã pela fúria assassina. No entanto, conforme os acontecimentos do dia avançavam, até mesmo os especialistas mais liberais permitiram que seu pesar descambasse para um sentimento antimuçulmanos. O Washington Post decidiu republicar uma das caricaturas polêmicas de Charlie Hebdo sobre o profeta Maomé.

Charlie Hebdo é uma revista controversa sob qualquer avaliação. Suas charges satíricas caracterizam-se por sua natureza polêmica e tem zombado de uma série de religiões ao longo dos anos, e não apenas do Islã. Porém, poucos têm falado sobre o racismo de muitos dos desenhos da revista e sobre como eles provocativamente forçam os limites entre a liberdade de expressão e preconceito.

Charges políticas são evidentemente um dos nossos direitos democráticos. Eles são, ao mesmo tempo, um dos veículos básicos de racismo frequentemente empregados em momentos de tensão política. Tomemos por exemplo uma charge que circulou num panfleto do Partido Democrata durante a campanha para governador e para o Congresso na Pensilvânia, Estados Unidos, em 1866. O desenho oitocentista foi usado como propaganda contra do Freedman Bureau, um órgão da política de Reconstrução criado para integrar os afro-americanos na sociedade após a abolição legal.

Enquanto a mídia social adotava a hashtag #JeSuisCharlie em solidariedade ao Charlie Hebdo, um grupo menor de vozes de pesar e oposição também surgiu: #JeNeSuisPasCharlie – que reconhecia a insensatez da violência envolvido no caso, mas também se recusava a descartar a história do racismo da revista.

Muitos dos mais controversos desenhos do Charlie Hebdo foram dirigidos não só contra os muçulmanos. Eles também foram dirigidos contra os negros, particularmente mulheres, como as meninas nigerianas raptadas pelo Boko Haram. Nós podemos condenar a violência contra Charlie Hebdo sem tolerar o racismo muitas vezes reproduzidos por seus cartunistas.

Stuart Hall, referência dos estudos culturais, nos lembra que imagens e caricaturas têm uma estreita e duradora relação com o colonialismo, a escravidão e o preconceito em todo o mundo atlântico. Todas as caricaturas não são criadas da mesma forma. Algumas delas, ao mobilizar antigos legados de discriminação de raça, gênero, sexualidade, classe e até mesmo de religião, podem reproduzir dinâmicas de poder desigual que têm um efeito negativo sobre as pessoas marginalizadas. As charges racistas de afro-americanos que circularam amplamente nos Estados Unidos no século XIX foram em grande parte um precursor do linchamento. Veja-se, por exemplo, o documentário Ethnic Notions [Noções Étnicas] de Marlon Riggs.


Em 2013, o editor de Stéphane Charbonnier, carinhosamente conhecido como “Charb”, morto no ataque, escreveu um breve ensaio defendendo o semanário contra acusações de racismo,

“Charlie, nosso Charlie Hebdo, está se sentindo indiscutivelmente mal. Porque uma mentira inacreditável está circulando entre mais e mais pessoas, e nós ouvimos isso todos os dias. De acordo com eles, Charlie Hebdo tornou-se uma folha de racista”.

Ele passa a observar que “o antirracismo e uma paixão pela igualdade entre todas as pessoas são e continuam sendo os princípios fundadores do Charlie Hebdo”.

Mas isso é apenas isso. A conversa não tinha acabado. Ao matar Charb e os outros nove jornalistas no Charlie Hebdo, os assassinos mutilaram nossa capacidade de continuar o debate. É aqui que a tragédia engana, e não até onde nós deveríamos ser livres para produzir qualquer tipo de charge racista que gostamos sem pensar sobre o impacto político e emocional que isso poderia ter.

Nós tínhamos mais para debater, mais para discutir, e Charb deveria estar aqui para responder. 


*Original em inglês "Charlie Hebdo: We Must Grieve the Dead Without Misconstruing Racism as Democratic Ideal". Disponível em: http://truth-out.org/opinion/item/28452-charlie-hedbo-we-must-grieve-the-dead-without-misconstruing-racism-as-democratic-ideal. Traduzido por Ana Flávia Magalhães Pinto, sem fins comerciais e com autorização da autora. 

**Christen A. Smith é professora assistente de dos Departamentos de Antropologia e de Estudos Africanos e da Diáspora Africana da Universidade do Texas, em Austin. Seu próximo livro é “Afro-Paradise: The Black Body, Violence and Performance in Brazil, analyzes anti-black state violence and the black Brazilian community's response to it”. Seu endereço no Twitter é @profsassy.