terça-feira, 22 de novembro de 2016

Dandara: ficção ou realidade?

Dandara: ficção ou realidade? 

Leia o texto do mestre Nei Lopes



Vira e mexe, reacende a polêmica sobre a existência real das pessoas de Dandara, Luiza Mahin, Chico Rei, entre outras reverenciadas pelos discursos populares. Mais do que oportunidade para demonstrar erudição, uma boa conversa sobre isso serve para ressaltarmos o quanto a difusão e a ampla apropriação dos estudos históricos são necessárias, importantes e podem encontrar terreno fértil. 

Afinal, a possibilidade de se alimentar mitos e lendas sobre personagens legendários e com forte apelo social tem a ver com a trágica carência de informações sobre as experiências de segmentos marginalizados e subalternizados ao longo da história deste país. As pessoas têm sede de saber, por exemplo, como os homens e, cada vez mais, as mulheres negras levaram suas vidas. Daí, um pequeno pedacinho de qualquer coisa vira tesouro, abrindo brecha para muitas apropriações, umas mais legais outras nem tanto. Isso, em si, não é o maior dos problemas. 

Sendo assim, nesta semana do 20 de Novembro, tendo em vista que o blog Meu Lote, do grande mestre Nei Lopes, está em manutenção, pedi autorização para compartilhar o texto Dandara, a "Noiva" de Zumbi, que ele escreveu há dois anos.

Bora levar adiante essa conversa, porque o homem sabe das coisas! 


Dandara, a “Noiva” de Zumbi


Nei Lopes – 20/11/2014

Zezé Motta interpreta o personagem Dandara no filme Quilombo, de Cacá Diegues, de 1984.


“Nome de Dandara nasceu no fundo das eras mais profundas do que o mar. Velhos manfus [?] contavam que no tempo em que a grande cachoeira ainda pertencia ao poderoso n’gombe, existiu uma orixá de peitos sempre pejados chamada Dandara. Um dia a orixá, famosa caçadora de rinocerontes, acuou num tenebroso socavão da floresta de Ogum uma presa acompanhada de cria nova. Percebendo que o pequeno animal tinha fome, Dandara largou por terra a lança afiada, agachou-se e aconchegou-o aos peitos fartos, mas, enquanto amamentava, a fêmea enfurecida e investiu, matando Dandara e a própria cria”...

E assim foi que, no texto delirantemente fantástico de seu romance épico “Ganga-Zumba” (Edições de Ouro, s/d, cap. 86, p. 138), em que mistura mitos, expressões lingüísticas e origens étnicas diferentes e distantes no mesmo ambiente; foi assim que o grande escritor mineiro João Felício dos Santos (1911-1989), certamente sem querer, criou um dos maiores mitos da História do Brasil – a lenda de Dandara, o amor de Zumbi. Vejamos por quê. 

Os textos que fundamentam a História dos quilombos de Palmares baseiam-se em relatórios militares encomendados pelas autoridades coloniais. Foram escritos sob a ótica dos dominadores, repressores daquela subversão, e serviam principalmente para exaltar não as façanhas dos aquilombados, mas a atuação dos integrantes das expedições de captura ou extermínio. Esses, sim, são citados nominalmente; enquanto que os quilombolas nominados são, salvo engano, apenas aqueles que deram nomes a suas comunidades, como era comum na Angola colonial: Dambrabanga, Andalaquituxe, Ganga Zumba, Zumbi, etc.

Falamos em Angola; porque o “quilombo” é uma instituição social congo-angolana. E aí apontamos a primeira armadilha da ficção de João Felício: ele associa o nome “Dandara” ao de um orixá, quando sabemos que o termo “orixá”, bem como sua conceituação, não pertence ao universo banto, angolo-conguês, e sim ao iorubano, da atual República da Nigéria, no Golfo da Guiné.

E dizemos mais: num contexto profundamente sexista, quanto era o do século XVII, no Brasil e na Europa, em relatórios de guerra, salvo eventuais exceções, mulheres são citadas apenas como registro estatístico. Exemplo: “Constam os Palmares de negros que fugiram a seus senhores (...) e com mulheres e filhos habitam em um bosque de tão excessiva grandeza que fará maior do que todo o reino de Portugal” (relatório em M.M. Freitas, “Reino negro de Palmares", Bibliex, 1988, p. 345).

Na História palmarina, a única menção a mulher de que temos notícia, salvo prova em contrário, é a feita à idosa “Madalena, negra de Angola”, que seria “sogra” de um dos filhos do “rei” Ganga-Zumba (cf. Benjamin Péret. “O quilombo de Palmares”, Lisboa, Fenda Edições, 1988, p. 26).

Observemos, ainda, que esse livro do francês Péret estampa uma farta nominata; mas toda ela referente ao período em que a liderança de Palmares era exercida por Ganga-Zumba e não por Zumbi, que comandou a decisiva dissidência do grupo.

Sobre isso assim escreve o historiador Ivan Alves Filho: “No mês de novembro de 1678, à frente de um grupo de 140 pessoas, Ganga-Zumba se deslocou para Recife a fim de formalizar o acordo de paz. Ele foi nomeado oficial do exército português e dois de seus filhos foram adotados pelo Governador (...). Assim, Ganga-Zumba e seus partidários vão viver em Cucaú, uma região situada a 32 quilômetros de Serinhaém” (in “Memorial dos Palmares”, Brasília, Fundação Astrojildo Pereira/Editorial Abaré, 2008, p.103).

Esse fato histórico nos remete de pronto ao ocorrido no Congo, cerca de duzentos anos antes, quando, em seus primeiros contatos com os exploradores portugueses, a corte do poderoso Reino concorda em receber os sacramentos católicos e nomes cristãos como Afonso (ex-Nzinga Mbemba), Pedro (ex-Nkanga Mbemba), Francisco (Nzinga Mpudi), Diogo (Nkumbi-a-Mpudi), etc. As rainhas e princesas não mereceram nenhum registro histórico.

Vejamos, também, que o fato de Ganga-Zumba ter fechado acordo com os colonialistas fez com que sua época fosse mais detalhada nos documentos, inclusive com menções heróicas tais como a uma pistola de prata com que teria cometido suicídio, versão mais tarde substituída por homicídio mediante envenenamento. Já Zumbi não era “nobre”, nem “herói”: era “bandido, terrorista, guerrilheiro”. Como seus ancestrais africanos, que resistiram até não poder mais à cobiça e às armas lusitanas.

**

O “Zumbi” de João Felício dos Santos é um herói mítico, inclusive confundido com Ganga-Zumba. Seus quilombolas ora falam quimbundo e quicongo (idiomas bantos), ora falam iorubá. Cultuam orixás (forças naturais nagôs, iorubanas) com cantigas do vasto universo congo. E sua “Dandara” é, como visto acima, uma clara referencia a Oiá-Iansã, nome tutelar do trecho nigeriano do rio Níger, que lá é chamado “Odo-Oya” (rio de Oiá).

Reforçamos dizendo que, anos atrás, em um trabalho intitulado “Onomástica Palmarina” (publicado na revista “Carta”, Brasília, Senado Federal, Gabinete do Senador Darcy Ribeiro, n. 13, nov. 1994, pp. 55-62) conseguimos estabelecer, pelo menos em hipóteses, explicações etimológicas para quase todos os nomes próprios, de personagens da saga quilombola. Exceto o de “Dandara”.

Sobre esse nome, para nós, o que ecoa próximo é apenas o de Elesbão Dandará, um dos lideres da Revolta dos Malês, em 1835. Mas “Dandará” é um nome hauçá, língua em que o elemento “dan” corresponde ao árabe “ibn” e ao hebraico “ben”, com o significado de “filho de”.

Acreditamos, então, salvo prova em contrário, que a “Dandara” de Zumbi é um personagem fictício. O que, entretanto, não nos impede de louvar e apoiar o esforço das mulheres afro-brasileiras no sentido de termos, cada vez mais, no panteão das heroínas afrodescendentes, figuras exemplares, merecedoras de reverência e até mesmo veneração. Elas existiram e existem, sim. E não são poucas.



Aproveitando, segue o link para os filmes Ganga Zumba (1963) e Quilombo (1984), dirigidos por Cacá Diegues, para os quais colaborou José Felicio dos Santos.  


domingo, 20 de novembro de 2016

"20 de Novembro", poema de Beatriz Nascimento

20 de Novembro 

Beatriz Nascimento (1942-1995)



O Quilombo é memória, que
não acontece só pros negros,
acontece pra nação. Ele
aparece, ele surge, nos 
momentos de crise da 
nacionalidade!

A nós não cabe valorizar 
a História. A nós nos cabe ver
o continuum dessa História...

Porque Zumbi queria fazer
a nação brasileira, já com 
índios e negros integrados 
dentro dela. Ele quer 
empreender um projeto
nacional, de uma forma 
traumática, mas não tão 
traumática quanto os
ocidentais fizeram, destruindo
culturas, destruindo a 
História dos povos dominados. 

Fonte: Jornal do MNU, n. 17, set-nov. de 1989, p. 12.



terça-feira, 12 de julho de 2016

Luiza Bairros, a você que nos mostrou a possibilidade de ser, muito obrigada!

Axé, Luiza Bairros! Axé, Yalodê!

A você que nos mostrou a possibilidade de ser, muito obrigada!


Sueli Carneiro, Patrícia Hill Collins, Luiza Bairros e Angela Davis no Festival Latinidades, 2014


Foi num sábado de 1998 ou 1999. Era século XX. Em algum dia daquela semana, Edson Cardoso mandou um recado que eu guardei da seguinte maneira: “Tenho de estar na Enap, às 15 horas, para ver duas mulheres que vão falar”. De Planaltina ao final da W3 Sul, eu bem lembro que me perguntei: “Mas o que será que essas mulheres vão falar de tão importante?”. Cheguei lá antes da hora. Estava rolando uma daquelas discussões da pesada entre as/os militantes presentes. Era o tempo em que ainda me assustava com esse tipo espaço. Mas, em dado momento, aquela agitação toda foi interrompida. As cadeiras da sala foram reorganizadas e as duas mulheres se encaminharam à mesa. Eram Luiza Bairros e Sueli Carneiro, anotei no caderno aqueles dois nomes, achando que poderia esquecer depois.

Do desconhecimento e da desconfiança, em alguns minutos, passei a um estado de maravilhamento. Ali sentadas, elas olhavam para aquela audiência com cumplicidade e altivez. Eu nunca tinha visto nenhuma mulher negra fazer aquilo em toda a minha vida! A voz de Luiza, em especial, me mobilizava. Era grave e muito firme, embalava palavras extremamente bem articuladas e criava em mim a sensação de estar em frente a um espelho e querer ver minha imagem ali refletida. É isso. Aquele momento marcou o momento da minha vida em que eu descobri que ser mulher negra era mais do que me sentir acuada, fora de lugar no mundo.

A despeito de todos os nãos cotidianos, aquelas duas mulheres me mostraram a possibilidade de realmente ser. Uma me despertava a possibilidade e a outra aparecia como a confirmação de que isso era mais que viável. Eram duas! E, partir delas, passei a encontrar muitas outras e olhar no espelho passou a ser oportunidade para ver traços de Jurema, Wânia, Vilma, Martha, Vera, Sinha, Inaldete, Janaina, Lúcia, Ana, Conceição e tantas outras em meu rosto, em minha história.

Lembro disso hoje por não saber ainda como lidar com ausência física de Luiza Bairros, por tentar me organizar para o desafio de me conectar a ela pela força da ancestralidade. Ao longo desses anos, nunca houve contexto de dizer obrigada pelos muitos momentos em que ela me protegeu, com suas palavras e atitudes, da violência do racismo, do machismo, do elitismo, que grassam nos mais variados espaços sociais, com destaque para a academia, para onde ela disse que nós teríamos que ir e fazer a luta com todas as armas necessárias.

Entre tantas recordações de felicidade guerreira, escolheria, por fim, uma que me leva ao encontro de estudantes negros na UnB, em 2005, quando Luiza Bairros deu uma boa chamada na nossa geração, dizendo que a viabilidade do movimento negro não se garantia apenas pelos homens que adoram o microfone, mas sobretudo pelas mulheres que normalmente são as que mais trabalharam na retaguarda para que a coisa toda aconteça. Lembro que ficamos muito orgulhosas de sermos tratadas como protagonistas.

Assim como eu, sei que muitas mulheres e jovens negras têm muito a contar dessa que nos foi caminho e agora virou estrela.

Axé, Luiza Bairros! Axé, Yalodê! Em sua honra e memória, seguiremos! 

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Equede: A mãe de todos - Resenha

Equede: A mãe de todos − um livro sobre amor, ancestralidade e mulheres de partido alto



“E 1964, vocês sabem, foi o ano do golpe militar. Ali no Centro de Salvador, depois da aula, juntava o pessoal do Teixeira, do Central, do Ipiranga e dos outros colégios. Muitas vezes fomos para as ruas e participamos das manifestações estudantis, principalmente em 1968. Imagine a cabeça de uma jovem dividindo-se entre as convicções políticas e obrigações religiosas” – relembra Equede Sinha, 70 anos, em seu livro autobiográfico Equede: A mãe de todos, publicado pela editora Barabô e lançado no dia 8 de março de 2016, em Salvador, e em 6 de maio , em São Paulo.

Naquele momento em que pessoas pelo país afora se reinventavam na luta pela defesa da democracia e da liberdade de expressão, a jovem Gersonice Azevedo também tomava decisões e assumia responsabilidades que teriam impacto não apenas em sua vida, mas ainda na de toda uma coletividade da qual era parte antes mesmo do seu nascimento. É que em 1970, um ano após ter se casado com Evaristo Bradão e se mudado para o Rio de Janeiro, ela foi confirmada equede no Terreiro da Casa Branca, o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, em Salvador, pelas mãos e as bênçãos de Mãe Nitinha e Mãe Tatá. Suspensa aos 7 anos, firmava-se, então, como mãe antes mesmo de gerar seus quatro filhos naturais: Gersoney, Gustavo, Edney e Júnior.

Divulgação

No livro, escrito na primeira pessoa, ela nos conta como, nas últimas quase cinco décadas, empreendeu esforços individuais e coletivos para “dar continuidade ao que nos foi legado por nossa ancestralidade”, dedicando-se ao exercício diário de ser mãe não só de Oxóssi, mas “de todos os orixás, de Exu a Oxalá”, e daquelas/es protegidas/os pelos orixás. Vistas a partir do seu lugar de fala, as narrativas conservadoras sobre a história da cidade de Salvador e também do Brasil, que tornam invisíveis ou meramente anônimas pessoas como ela, ficam seriamente comprometidas. Sua forma de perceber e viver a vida, em contraponto a isso, assume relevância no destino de mulheres, homens e lugares. De tal sorte, a escrita da autobiografia torna-se uma afirmação da importância do seu lugar social, do seu posto de equede da Casa Branca, da sua condição de mãe de todos/as.

O governador Roberto Santos poderia não ter oficialmente liberado os cultos de matriz africana na Bahia em 1976. Assim como as derrotas poderiam sobrepujar as vitórias no que toca a degradação da natureza e a especulação imobiliária – como o risco causado pela construção de um posto de combustível da multinacional Esso nos anos 1970 e 1980, que atentou contra a manutenção da centenária herança material e imaterial associada ao terreno da Casa Branca, mas que foi demolido graças à mobilização do povo de axé. Mas o fato é que, como aprendera com outras “mulheres de partido alto”, Equede Sinha já sabia que as águas sempre criam passagem. E foi assim que se tornou sujeita ativa e testemunha das ações das/os praticantes do candomblé em defesa de seus direitos, contra o desrespeito religioso e o racismo.

Equedes Sinha de Oxóssi,  Nem de Ogum (Angélica Ribeiro da Silva), Marineide Ferreira Conceição de Oxalá, Maridalva Ferreira Conceição de Oxóssi, e as irmãs Liliane e Nadja Chagas de Oxum. Foto: Dadá Jaques.

Isso porque, mesmo no tempo da distância geográfica, ela se manteve fiel aos compromissos firmados com o axé daquela casa de tradição matriarcal, fazendo-se presente nas variadas atividades anuais, seja “com barriga, sem barriga, com filho, sem filho”. Seu retorno definitivo em 1990, no entanto, foi justificado por seu lugar de filha. A saúde de sua mãe carnal, a Vovó Conceição (Maria da Conceição Oliveira), de Nanã, estava bastante debilitada, exigindo um zelo ainda maior. Enquanto se dedicava a esses cuidados, foi ainda surpreendida pela morte do marido. Pouco depois, em 1992, aos 82 anos de vida e 53 de candomblé, a bem lembrada Vovó Conceição também fez sua passagem para a ancestralidade. Mas, apesar dos reveses, “dentro de nossa religião, a maturidade chega muito cedo e tive forças para superar e honrar meus compromissos como mãe biológica e mãe espiritual que sem fui” − avalia.

Aliás, essa serenidade perante os desafios da vida Equede Sinha muito atribui aos ensinamentos de Vovó Conceição, sem, ao mesmo tempo, deixar de reconhecer os valiosos exemplos das outras tantas mães que lhe fizeram mãe. Em reverência aos significados desses aprendizados, ela trabalhou pela criação do Espaço Cultural VovóConceição, centro de corte e costura para roupas de orixás, inaugurado em 2006. Além de zelar pela manutenção de certas práticas culturais registradas por meio das vestimentas utilizadas nos rituais internos e nas festividades públicas, o espaço existe como forma de criar alternativas de geração de renda, sobretudo para as mulheres residentes no entorno da Casa Branca. Em sintonia com um conceito abrangente de saúde, o espaço também abriga oficinas de confecção de instrumentos, capoeira, alongamento, contação de histórias, etc., parte das atividades da programação anual da Feira da Saúde, que acontece desde 2003. Ao refletir sobre os porquês de fazer isso, Equede Sinha reafirma o princípio da ancestralidade: “Tenho certeza que ela [Vovó Conceição] está presente fazendo parte desta comunidade através dos ensinamentos que deixou”.

Equede Sinha e sua mãe, Vovó Conceição. Acervo Terreiro da Casa Branca.

Não sendo dirigido apenas ao povo de santo ou a especialistas, o livro traz uma série de informações que permitem a leitores/as leigos/as se aproximar de aspectos do cotidiano de um terreiro de candomblé que muito têm a dizer sobre as reelaborações das práticas culturais de origens africanas no Brasil, como a Festa do Jacaré, uma celebração à memória das antigas lideranças da comunidade, cuja origem remete à festa das Máscaras Geledés. E faz isso sem cair em proselitismo, é bom dizer.

A começar pelo próprio lugar de Equede, Mãe Sinha oferece explicações sobre esse lugar ocupado pelas mulheres que não entram em transe, não “viram no santo”, sendo responsáveis por atender os orixás e a casa. Trata-se, pois, de uma figura central na preservação do costume de acolher, escutar o que as pessoas, os/as filhos/as, têm e precisam dizer, e alimentar o sentimento de família estendida, tão caros à sobrevivência das populações negras trazidas para o lado de cá de Atlântico por força do tráfico internacional de seres humanos escravizados. Além dessa posição aparentemente simples, ela ainda nos lembra que as equedes também podem ocupar qualquer um dos cargos/postos da hierarquia de uma casa de candomblé. “Já tivemos equede-ialorixá, equede-iaquequerê, equede-iamorô” − comenta. Sobre elas também recai a responsabilidade de saber o que ofertar, o que comer, cantar, vestir, como dançar, agradecer e reverenciar os orixás e toda a ancestralidade. “Autoridade é vivência e conhecimento”, e, justamente por isso, faz questão de exaltar os ensinamentos de Tia Morena de Obaluaiê, que dizia que a “cozinha de axé é para conhecimento da comunidade”.

As histórias de Equede Sinha são, por certo, maneiras de se posicionar a respeito de assuntos delicados que envolvem as transformações e a continuidade do candomblé e suas tradições. Efetivamente, ao rememorar episódios que apontam para as conexões com casas em outros estados e os anseios por adequação às práticas religiosas e linguísticas da África contemporânea, por exemplo, ela faz uma defesa daquilo que foi sendo construído e mantido pelas gerações de Mães Ancestrais que enfrentaram as possibilidades e limitações colocadas pelo processo histórico brasileiro. Sobre isso, ela não se intimida ao dizer.

“As traduções que estão tentando fazer podem se tornar uma grande armadilha. Corremos o sério risco de perder todo esse legado, toda essa história de diversos povos que se uniram, se misturaram aqui no Brasil, e que são a nossa origem, a identidade da nossa religião. O que eles falavam é o que nós falamos hoje. Perdemos muita coisa, mas a essência é a mesma.Temos um ioruba religioso, construído com partes de inúmeros dialetos sagrados que vieram de uma África que já não existe mais. Isso se misturou com a cultura local dominante da época e nos fez o que somos. Então o jeito que minha tia Tieta canta, para mim, é o certo. Faço questão de cantar do jeito dela porque é a forma de valorizar a maneira que ela aprendeu com as mais velhas”.

No fim das contas, para ela, o que importa mesmo é o princípio de que os orixás “são nossos antepassados divinizados que se integraram às energias da natureza”. E, portanto, como diz a cantiga (orim) que entoou durante o lançamento do livro em São Paulo: “Nada vai nos impedir de praticar a religião de nossa casa”. O livro está, pois, repleto dessas conversas de mãe, joias preciosas nesse tempo de novas batalhas contra preconceitos e discriminações.

Lançamento do livro em São Paulo, Biblioteca Mário de Andrade, 6 de maio de 2015. 

Livro: Equede – A Mãe de Todos
Autora: Gersonice Equede Sinha Azevedo Brandão
Organização: Alexandre Lyrio e Dadá Jaques
Editora: Barabô  (Salvador, 2016)
Valor: R$ 150,00

Outras sugestões de leitura:
Lisa Earl Castilho e Luis Nicolau Pares. Marcelina da Silva e seu mundo: novos dados para uma historiografiado candomblé ketu. Afro-Ásia, n. 36, 2007, p. 111-151.
Lisa Earl Castilho e Luis Nicolau Pares. José Pedro Autran e o retorno de Xangô . Religião e Sociedade, v. 35, n. 1, 2015, p. 13-43.