terça-feira, 13 de outubro de 2015

O Topo da Montanha e a afirmação da humanidade negra

O Topo da Montanha e a afirmação da humanidade negra


Notas a partir do lugar de público negro




Longe de ser uma crítica de arte, escrevo a partir tão somente do lugar de público. Mas não apenas público, substantivo carente de materialidade. Falo como integrante do público negro, um conjunto de espectadores/as comumente subestimado ou até muito sonhado, porém tido como distanciado das salas de teatro, cinema, galerias, etc., por razões que dialogam com as violentas e sofisticadas práticas de exclusão sociorracial.

Faço isso porque acredito sinceramente que, afora autoras/es, obras e críticos/as especializados/as, o público é também fundamental para que a arte exista. E nós, público negro, não só existimos, mas também, tal como aconteceu na noite do último sábado (10), podemos nos fazer presentes em quantidade e qualidade!

Estou me referindo à experiência de assistir à peça O Topo da Montanha, uma adaptação do texto de Katori Hall, dirigida por Lázaro Ramos, produzida e protagonizada por ele e Taís Araújo, que estreou no Teatro Faap, São Paulo, em 9 de outubro e fica em cartaz até 20 de dezembro.

Eu e um casal de amigos nos dirigimos a essa casa localizada no elegante bairro de Higienópolis bem achando que seríamos a famigerada limitada cota negra entre uma maioria de espectadores brancos. Diferentemente do previsto e como chegamos cedo, pudemos nos deliciar ao ver a entrada de seguidos pequenos grupos de amigos, famílias, casais e homens e mulheres solitárias de pele escura, cabelo crespo e com umas caras de contentamento indisfarçável! As pessoas estavam gostando de se ver ocupando aquele lugar!

De todo modo, é preciso dizer que essa não foi a primeira vez que vi isso acontecer. Na verdade, observo esse fenômeno se repetir cada vez com mais frequência e intensidade nos últimos anos. Considero que eu mesma sou prova disso. Ouso até especular se a incorporação das cotas raciais ao debate público já não está servindo para catalisar a expansão dos limites da participação negra em outros espaços... É, pode ser, mas isso é assunto para outro texto.

Por ora, é melhor continuar no Topo da Montanha. Aliás, a escolha desse texto é, por si, um grande presente, sobretudo para nós, público negro. Em tempos de marchas em defesa da vida da população negra no Brasil ‑, o que inclui aproximações e conflitos de natureza variada ‑, recuperar a trajetória de Martin Luther King a partir do registro de múltiplas dimensões da vida humana serve como uma boa oportunidade para se refletir como temos encaminhado nossas práticas de resistência ao que nos oprime. O reconhecimento da confluência entre medo e esperança, egoísmo e altruísmo, vaidade e humildade num sujeito emblemático como King é, de fato, uma das várias qualidades da escrita de Katori Hall.

Natural de Memphis, Tennessee, ela é uma jovem escritora negra, de 34 anos, formada em instituições de renome como Columbia e Harvard, tendo sido a primeira mulher negra a receber o prêmio Laurence Olivier de melhor peça estreante, em março de 2010, por The Mountaintop, título original em inglês. Para além dos títulos acadêmicos e prêmios, vale mesmo a pena acompanhar a trajetória de Katori por sua capacidade criativa. Atualmente, ela está trabalhando em seu primeiro filme de curta metragem, Arkabutla, que fala sobre relações familiares e racismo.

Outras escolhas feitas para o espetáculo também nos convidam a reconhecer e destacar mais um punhado de talentos negros do teatro. A consultoria dramática e cênica é assinada por Ângelo Flávio. Ator, dramaturgo e diretor, ele é um dos expoentes do teatro negro brasileiro, fundador da Cia Teatral Abdias Nascimento (CAN) na UFBA, em 2002, e responsável, entre outras, pela montagem da peça A casa dos espectros (2006), a partir da obra Funnyhouse of a Negro (1964), de Adrienne Kennedy, outra escritora afro-estadunidense.

O figurino é de Tereza Nabuco, artista que há anos atua em produções da Rede Globo.

O desenho de luz, recurso fundamental para a garantia da dramaticidade do espetáculo, está sob os cuidados do experiente iluminador cênico Valmyr Ferreira. Afora diversos trabalhos no teatro, Ferreira assinou a iluminação da exposição “Abdias Nascimentos 90 anos ‑ Memória Viva”, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, 2004.Por sua vez, o cantor, ator, pianista, compositor e arranjador Wladimir Pinheiro assina a Trilha Original. Até bem recentemente, Wladimir esteve em cartaz com a peça Ataulfo Alves – O Bom Crioulo, dirigida por Luiz Antonio Pilar, no Teatro Dulcina do Rio. Bem que essa também poderia circular por outras cidades.

Somado a tudo isso, a interpretação da dupla Taís Araújo e Lázaro Ramos é capaz de emocionar ainda mais. Além de sustentarem muito bem o dinamismo das falas e do encaminhamento dado ao toque de inusitado fantástico da narrativa (tem que ir para entender!), os atores são capazes de garantir muito sentido até para os momentos de silêncio.

A performance de Taís, em especial, está digna de todos os aplausos de pé ao final. Vendo a maturidade de sua interpretação, foi impossível não lembrar do discurso de Viola Davis ao receber o Emmy 2015 de Melhor Atriz: “A única coisa que separa mulheres de cor de qualquer outra pessoa é oportunidade. Você não pode vencer o Emmy por papeis que não existem”. E mais uma vez livre de sabotagens, Taís Araújo se mostra uma gigante no palco. A atuação de Lázaro Ramos não deixa por menos. O brinde extra é perceber que o homem está jogando tão bem em tantas áreas!

Apagam-se as luzes, vem aquela sensação de quero mais! E, assim, ir ao teatro firma-se como algo que faz muito sentido para a vida, mesmo que isso implique reorganizar as finanças da semana ou do mês! É isso, o teatro também é nosso lugar, público negro! 


quinta-feira, 16 de julho de 2015

Planaltina contra a Redução da Maioridade Penal

Moradoras/es de Planaltina se organizam contra a redução da maioridade penal


Ana Flávia Magalhães Pinto

Reunião de Trabalho - Mobilização contra a Redução da Maioridade Penal, Igreja de Santa Rita, 15.7.2015, Planaltina-DF


Não é de hoje que o destino dos jovens brasileiros tem sido tratado como uma batata quente nas mãos de indivíduos que, por falta de preparo ou má fé, anseiam por se livrar do que chamam de “problema social”.

Na contramão dos esforços pelo reconhecimento da juventude como sujeito político de direito, pauta que se fortalece na agenda política mundial, temos assistido no Brasil às manobras de políticos conservadores e empresários do mundo da criminalidade para incutir na população a imagem dos jovens como um grande inimigo da sociedade.

As propostas de redução da maioridade penal apresentam-se, dessa forma, como apenas uma das possibilidades criadas pelos interessados nos lucros advindos do aumento do número de presídios e de outros produtos da cultura da violência, como programas de televisão, jornais e sites, que dependem do medo generalizado para seguir faturando.

Nesse jogo de manipulação, mascaram dados, mentem e tentam inviabilizar o debate com o argumento de a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos ser um clamor nacional. Logo, algo legítimo, justo e acertado.

Porém, num país que apresenta a média de um caso de linchamento por dia, não se pode achar que manifestações apaixonadas sejam a melhor medida para orientar as decisões sobre assuntos que afetam a integridade dos cidadãos e das cidadãs brasileiras.

Por essas e várias outras razões, muitas têm sido as pessoas e grupos a se manifestar contra essas artimanhas ou, se preferir, essas falsas soluções para falsos problemas.

Planaltina contra a Redução ‑ Em Planaltina, cidade-satélite do Distrito Federal, um grupo de jovens e adultas/os começou a se organizar para ampliar o debate entre a população local. Moradores/as de diferentes bairros, religiões, raça/cor, perspectivas políticas e gênero têm se reunido para desenvolver ações de sensibilização e aprofundar a reflexão por meio de dinâmicas coletivas. As atividades começaram com a “Plenária Planaltina contra a Redução”, realizada no auditório da FUP/UnB Planaltina, em 25 de junho. 

Flyer de Divulgação

“Com o trabalho social dentro da comunidade, a gente vê que o empoderamento desses jovens não existe. Os jovens têm poucas oportunidades, seja de lazer, esporte, cultura, etc. Isso favorece o envolvimento com a marginalidade. O jovem é produto do meio onde vive e não o gerador dos problemas do meio. Diferente do que diz a mídia, o índice de violência do jovem é muito menor do que o do adulto e a reincidência do jovem no crime nem se compara com o que se dá entre os adultos que passam pelo sistema prisional. Além disso, não podemos ignorar o fato de que quem mais tem sofrido com a violência são os jovens negros, pobres e com baixa escolaridade” – argumenta Gracineide Batista, do Estrela Buritis ‑ Centro Integrado de Oportunidades e Promoção Social (CIOPS), moradora da Vila Buritis 2 (Pombal).

Na noite de ontem (quarta-feira, 15), ela e mais vinte pessoas ocuparam uma sala da Igreja de Santa Rita, na Vila Buritis, para a reunião de trabalho de mobilização contra a redução da maioridade penal. O perfil dos/as participantes é diverso. Gente atuante na Pastoral da Juventude, em organizações de bairros, grupos culturais, movimento negro, entidades estudantis, etc.

Como defende Thiago de Souza, da Pastoral da Juventude: “Nós sabemos que a redução da maioridade penal, além de não resolver, pode piorar as coisas. Se as cadeias não servem para a ressocialização, não precisamos mandar mais jovens para lá. O que estão fazendo é um lobby disfarçado”.

O encontro serviu para definir a linha de atuação para os meses de julho e agosto. A prioridade é o diálogo direto nos espaços públicos e privados, como escolas, passeio público, vizinhança, espaços religiosos, etc. Para tanto, está prevista uma oficina de capacitação, a acontecer na próxima terça-feira (21), na Igreja Santa Rita, a partir das 19h30.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo por Christen Smith

Charlie Hedbo: Devemos nos consternar com os mortos sem confundir racismo como ideal democrático*


Christen A. Smith** 


O recente ataque contra a sede da revista satírica francesa Charlie Hebdo foi devastador, evidenciando tempos violentos sob a sombra traiçoeira do terrorismo. Devemos tomar cuidado para não atrelar nossa tristeza com o ódio, a vingança e mais violência, ao confundir nosso racismo como sendo nossa democracia.


Simplificando: desenhos políticos representam liberdade de expressão, mas eles nem sempre são inocentes e inerentemente democráticos. Embora as charges satíricas do Charlie Hebdo sejam dirigidas a uma ampla faixa de pessoas e questões políticas, não podemos negar a histórica relação existente entre caricatura racista e violência racial. Fazer isso, ouso dizer, seria minar o próprio espírito do debate saudável e controverso defendido pelo Charlie Hebdo.



Na verdade, este ataque é uma lembrança dolorosa de que momentos como esses muitas vezes envolvem nações democráticas em tiradas racistas de animosidade e vingança fomentadas por xenofobia; neste caso, pintando todos os muçulmanos como terroristas.

De fato, o sentimento anti-islamismo tem aumentado em toda a Europa. Logo após os ataques, a política conservadora francesa Marine Le Pen, líder do partido Frente Nacional, de extrema direita, previsivelmente culpou o Islã pela fúria assassina. No entanto, conforme os acontecimentos do dia avançavam, até mesmo os especialistas mais liberais permitiram que seu pesar descambasse para um sentimento antimuçulmanos. O Washington Post decidiu republicar uma das caricaturas polêmicas de Charlie Hebdo sobre o profeta Maomé.

Charlie Hebdo é uma revista controversa sob qualquer avaliação. Suas charges satíricas caracterizam-se por sua natureza polêmica e tem zombado de uma série de religiões ao longo dos anos, e não apenas do Islã. Porém, poucos têm falado sobre o racismo de muitos dos desenhos da revista e sobre como eles provocativamente forçam os limites entre a liberdade de expressão e preconceito.

Charges políticas são evidentemente um dos nossos direitos democráticos. Eles são, ao mesmo tempo, um dos veículos básicos de racismo frequentemente empregados em momentos de tensão política. Tomemos por exemplo uma charge que circulou num panfleto do Partido Democrata durante a campanha para governador e para o Congresso na Pensilvânia, Estados Unidos, em 1866. O desenho oitocentista foi usado como propaganda contra do Freedman Bureau, um órgão da política de Reconstrução criado para integrar os afro-americanos na sociedade após a abolição legal.

Enquanto a mídia social adotava a hashtag #JeSuisCharlie em solidariedade ao Charlie Hebdo, um grupo menor de vozes de pesar e oposição também surgiu: #JeNeSuisPasCharlie – que reconhecia a insensatez da violência envolvido no caso, mas também se recusava a descartar a história do racismo da revista.

Muitos dos mais controversos desenhos do Charlie Hebdo foram dirigidos não só contra os muçulmanos. Eles também foram dirigidos contra os negros, particularmente mulheres, como as meninas nigerianas raptadas pelo Boko Haram. Nós podemos condenar a violência contra Charlie Hebdo sem tolerar o racismo muitas vezes reproduzidos por seus cartunistas.

Stuart Hall, referência dos estudos culturais, nos lembra que imagens e caricaturas têm uma estreita e duradora relação com o colonialismo, a escravidão e o preconceito em todo o mundo atlântico. Todas as caricaturas não são criadas da mesma forma. Algumas delas, ao mobilizar antigos legados de discriminação de raça, gênero, sexualidade, classe e até mesmo de religião, podem reproduzir dinâmicas de poder desigual que têm um efeito negativo sobre as pessoas marginalizadas. As charges racistas de afro-americanos que circularam amplamente nos Estados Unidos no século XIX foram em grande parte um precursor do linchamento. Veja-se, por exemplo, o documentário Ethnic Notions [Noções Étnicas] de Marlon Riggs.


Em 2013, o editor de Stéphane Charbonnier, carinhosamente conhecido como “Charb”, morto no ataque, escreveu um breve ensaio defendendo o semanário contra acusações de racismo,

“Charlie, nosso Charlie Hebdo, está se sentindo indiscutivelmente mal. Porque uma mentira inacreditável está circulando entre mais e mais pessoas, e nós ouvimos isso todos os dias. De acordo com eles, Charlie Hebdo tornou-se uma folha de racista”.

Ele passa a observar que “o antirracismo e uma paixão pela igualdade entre todas as pessoas são e continuam sendo os princípios fundadores do Charlie Hebdo”.

Mas isso é apenas isso. A conversa não tinha acabado. Ao matar Charb e os outros nove jornalistas no Charlie Hebdo, os assassinos mutilaram nossa capacidade de continuar o debate. É aqui que a tragédia engana, e não até onde nós deveríamos ser livres para produzir qualquer tipo de charge racista que gostamos sem pensar sobre o impacto político e emocional que isso poderia ter.

Nós tínhamos mais para debater, mais para discutir, e Charb deveria estar aqui para responder. 


*Original em inglês "Charlie Hebdo: We Must Grieve the Dead Without Misconstruing Racism as Democratic Ideal". Disponível em: http://truth-out.org/opinion/item/28452-charlie-hedbo-we-must-grieve-the-dead-without-misconstruing-racism-as-democratic-ideal. Traduzido por Ana Flávia Magalhães Pinto, sem fins comerciais e com autorização da autora. 

**Christen A. Smith é professora assistente de dos Departamentos de Antropologia e de Estudos Africanos e da Diáspora Africana da Universidade do Texas, em Austin. Seu próximo livro é “Afro-Paradise: The Black Body, Violence and Performance in Brazil, analyzes anti-black state violence and the black Brazilian community's response to it”. Seu endereço no Twitter é @profsassy.