O Topo da Montanha e a afirmação da humanidade negra
Notas a partir do lugar de público negro
Longe de ser
uma crítica de arte, escrevo a partir tão somente do lugar de público. Mas não
apenas público, substantivo carente de materialidade. Falo como integrante do
público negro, um conjunto de espectadores/as comumente subestimado ou até
muito sonhado, porém tido como distanciado das salas de teatro, cinema,
galerias, etc., por razões que dialogam com as violentas e sofisticadas
práticas de exclusão sociorracial.
Faço isso
porque acredito sinceramente que, afora autoras/es, obras e críticos/as
especializados/as, o público é também fundamental para que a arte exista. E
nós, público negro, não só existimos, mas também, tal como aconteceu na noite
do último sábado (10), podemos nos fazer presentes em quantidade e qualidade!
Estou me
referindo à experiência de assistir à peça O Topo da Montanha, uma adaptação do texto de Katori Hall, dirigida por
Lázaro Ramos, produzida e protagonizada por ele e Taís Araújo, que estreou no
Teatro Faap, São Paulo, em 9 de outubro e fica em cartaz até 20 de dezembro.
Eu e um
casal de amigos nos dirigimos a essa casa localizada no elegante bairro de
Higienópolis bem achando que seríamos a famigerada limitada cota negra entre
uma maioria de espectadores brancos. Diferentemente do previsto e como chegamos
cedo, pudemos nos deliciar ao ver a entrada de seguidos pequenos grupos de
amigos, famílias, casais e homens e mulheres solitárias de pele escura, cabelo
crespo e com umas caras de contentamento indisfarçável! As pessoas estavam
gostando de se ver ocupando aquele lugar!
De todo
modo, é preciso dizer que essa não foi a primeira vez que vi isso acontecer. Na
verdade, observo esse fenômeno se repetir cada vez com mais frequência e
intensidade nos últimos anos. Considero que eu mesma sou prova disso. Ouso até
especular se a incorporação das cotas raciais ao debate público já não está
servindo para catalisar a expansão dos limites da participação negra em outros
espaços... É, pode ser, mas isso é assunto para outro texto.
Por ora, é
melhor continuar no Topo da
Montanha. Aliás, a escolha
desse texto é, por si, um grande presente, sobretudo para nós, público negro.
Em tempos de marchas em defesa da vida da população negra no Brasil ‑, o que
inclui aproximações e conflitos de natureza variada ‑, recuperar a trajetória
de Martin Luther King a partir do registro de múltiplas dimensões da vida
humana serve como uma boa oportunidade para se refletir como temos encaminhado
nossas práticas de resistência ao que nos oprime. O reconhecimento da
confluência entre medo e esperança, egoísmo e altruísmo, vaidade e humildade
num sujeito emblemático como King é, de fato, uma das várias qualidades da
escrita de Katori Hall.
Natural de
Memphis, Tennessee, ela é uma jovem escritora negra, de 34 anos, formada em
instituições de renome como Columbia e Harvard, tendo sido a primeira mulher
negra a receber o prêmio Laurence Olivier de melhor peça estreante, em março de
2010, por The Mountaintop,
título original em inglês. Para além dos títulos acadêmicos e prêmios, vale
mesmo a pena acompanhar a trajetória de Katori por sua capacidade criativa.
Atualmente, ela está trabalhando em seu primeiro filme de curta metragem, Arkabutla, que fala sobre
relações familiares e racismo.
Outras
escolhas feitas para o espetáculo também nos convidam a reconhecer e destacar
mais um punhado de talentos negros do teatro. A consultoria dramática e cênica
é assinada por Ângelo Flávio. Ator, dramaturgo e diretor, ele é um dos
expoentes do teatro negro brasileiro, fundador da Cia Teatral Abdias Nascimento (CAN) na UFBA, em 2002, e responsável, entre outras, pela montagem da peça A casa dos espectros (2006), a partir da obra Funnyhouse of a Negro (1964), de Adrienne Kennedy, outra
escritora afro-estadunidense.
O figurino é
de Tereza Nabuco, artista que há anos atua em produções da Rede Globo.
O desenho de
luz, recurso fundamental para a garantia da dramaticidade do espetáculo, está
sob os cuidados do experiente iluminador cênico Valmyr Ferreira. Afora diversos
trabalhos no teatro, Ferreira assinou a iluminação da exposição “Abdias
Nascimentos 90 anos ‑ Memória Viva”, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro,
2004.Por sua vez, o cantor, ator, pianista, compositor e arranjador Wladimir
Pinheiro assina a Trilha Original. Até bem recentemente, Wladimir esteve em
cartaz com a peça Ataulfo Alves – O Bom Crioulo, dirigida por Luiz Antonio Pilar, no Teatro Dulcina
do Rio. Bem que essa também poderia circular por outras cidades.
Somado a
tudo isso, a interpretação da dupla Taís Araújo e Lázaro Ramos é capaz de
emocionar ainda mais. Além de sustentarem muito bem o dinamismo das falas e do
encaminhamento dado ao toque de inusitado fantástico da narrativa (tem que ir
para entender!), os atores são capazes de garantir muito sentido até para os
momentos de silêncio.
A
performance de Taís, em especial, está digna de todos os aplausos de pé ao
final. Vendo a maturidade de sua interpretação, foi impossível não lembrar do
discurso de Viola Davis ao receber o Emmy 2015 de Melhor Atriz: “A única coisa
que separa mulheres de cor de qualquer outra pessoa é oportunidade. Você não
pode vencer o Emmy por papeis que não existem”. E mais uma vez livre de
sabotagens, Taís Araújo se mostra uma gigante no palco. A atuação de Lázaro
Ramos não deixa por menos. O brinde extra é perceber que o homem está jogando
tão bem em tantas áreas!
Apagam-se as
luzes, vem aquela sensação de quero mais! E, assim, ir ao teatro firma-se como
algo que faz muito sentido para a vida, mesmo que isso implique reorganizar as
finanças da semana ou do mês! É isso, o teatro também é nosso lugar, público
negro!