terça-feira, 18 de março de 2014

Relato sobre a reunião da presidenta Dilma Rousseff com integrantes do Movimento Negro

Da bala à bola − presidenta Dilma Rousseff se reúne com integrantes do Movimento Negro para falar sobre campanha contra racismo na Copa


Um relato sobre a reunião ocorrida em Brasília, em 13 de março de 2014




Ao responder afirmativamente ao convite para a segunda reunião da presidenta Dilma Rousseff com integrantes dos Movimentos Negros, que ocorreu na última quinta-feira (13), não tinha qualquer expectativa de que o encontro pudesse ser um momento decisivo para a solução dos problemas enfrentados pela população negra no Brasil. Afinal, eventos dessa natureza não servem para isso. Isso, entretanto, não é o mesmo que dizer   que para nada servem.

A reunião abriu uma série de devolutivas da presidenta com os segmentos dos movimentos sociais com os quais ela se encontrou após as manifestações de junho de 2013. Anunciada apenas dois dias antes, como de costume, o encontro assumia um tom de urgência. Todavia, era óbvio que essa “priorização” não se dava exatamente pelas mesmas razões que nós, negras e negros − mais de metade da população nacional −, nos consideramos prioritários para agenda política do país.

O jogo de forças que nos conduziu ao lugar de sujeito estratégico neste momento específico remete, pois, aos desafios da realização da copa do mundo de futebol em junho próximo, tendo como slogan “Copa pela paz e contra o racismo”. No país do futebol, não foram os alarmantes números dos assassinatos de jovens negros que motivaram o chamado. Na terra de Pelé, não foi a gravidade dos dados sobre mortes evitáveis entre pessoas negras atendidas pelo SUS que impulsionou a ação. Também não foi o incômodo diante dos conteúdos e formatos racistas de programas televisivos que serviu como catalizador de tudo.

Em vez disso, o que impulsionou o interesse de parte dos organizadores da festa foi o comportamento de torcedores fora das regras do ilusório “racismo sutil brasileiro”. Digo parte porque há figuras importantes nesse cenário que não querem nem saber da questão. Diante da repercussão negativa, o técnico da seleção brasileira Luiz Felipe Scolari, por exemplo, não hesitou em desqualificar o debate e afirmar: “Isso é bobagem. São uns imbecis que fazem isso (atos de racismo). Vocês (jornalistas) não deveriam nem dar oportunidade para esses caras ficarem grandes. Não tem debate. Nós todos somos iguais. Não tem credo, cor, raça que nos faça diferentes”.

Da ignorância do Felipão, todos sabem. Da mesma forma, quem luta contra o racismo cotidianamente sabe que o que aconteceu/acontece no futebol é uma das tantas formas da violência e barbárie dirigidas contra a população negra. Mesmo assim, já que surgiu a oportunidade para falar abertamente sobre o racismo para o Brasil, num momento tão especial, o silenciamento não se apresenta como opção. Por outro lado, a primeira exigência é não aceitar uma mera campanha de constrangimento para que o racismo se reproduza tão somente no chamado “modo disfarçado”. 

As desigualdades raciais são exageradamente graves e pedem ações incisivas em várias frentes. Esse foi o consenso entre os diferentes ativistas que se fizeram presentes tanto na reunião preparatória, que ocorreu no fim da manhã, quanto na oficial com a presidenta, no fim da tarde. Para esta, o grupo maior escolheu quatro pessoas para abordar temas centrais das agendas de promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo no Brasil, a saber, Ana Flávia Magalhães Pinto, integrante do Coletivo Pretas Candangas e da Campanha A Cor da Marcha (DF); Douglas Belchior, da UNEafro (SP); Maria da Conceição Lopes Fontoura, representante da ONG Maria Mulher (RS) e conselheira do CNPIR; e Paulino Cardoso, presidente da ABPN e conselheiro do CNPIR. 

A reunião começou com uma fala introdutória da presidenta Dilma Rousseff. Reafirmando convicções sobre a gravidade do racismo, na linha do que tem dito em pronunciamentos públicos e nas redes sociais, a presidenta chegou ao tema da Copa do Mundo e à proposta de construção de uma campanha de mobilização contra o racismo nos meses que antecedem o evento. Haveria, pois, o interesse de dialogar com o Movimento Negro no intuito de produzir um discurso coerente e legítimo a respeito.

Em seguida, Paulino Cardoso fez um resumo do que ocorreu desde a primeira reunião em 19 de julho de 2013. Falou sobre o diálogo estabelecido com Ministério da Educação, de algumas conquistas, como a garantia das cotas raciais no SISUTEC e a formalização do Programa Abdias do Nascimento de bolsas para a ida de estudantes negros de graduação a universidades no exterior. Entretanto, registrou o impasse gerado pela Capes e o CNPq ao não liberar a bolsas, peça-chave para o programa saia do papel. Além disso, tratou da fragilidade das agendas de enfrentamento ao racismo nos trabalhos do Poder Legislativo, com destaque para a defesa do PL n. 4471, que instituiu o fim dos autos de resistência, altera o Código de Processo Penal e prevê a investigação das mortes e lesões corporais cometidas por policiais durante o trabalho; e para a crítica à PEC n. 315, que transfere para o Legislativo a autoridade pela titulação de terras indígenas e quilombolas. 

Maria da Conceição Lopes Fontoura falou sobre a centralidade das ações voltadas para as mulheres negras. Retomou o debate sobre a aprovação da PEC das Domésticas e alertou para os significados das várias controvérsias e do perigo de retrocesso avistado nos encaminhamentos dados ao texto da Regulamentação. 

Por sua vez, Douglas Belchior centrou na questão da Segurança Pública. Partiu, pois, da fragilidade institucional do Programa Juventude Vida, que, embora não tenha incorporado ao nome o recorte racial, afirma priorizar a defesa da vida de jovens negros. Defendeu, portanto, o fortalecimento institucional da agenda dentro da lógica do governo. Em seguida, defendeu a desmilitarização da polícia e criticou Projeto da Lei Antiterrorismo (PL 499/13), considerado uma medida antidemocrática, que colocaria em risco a liberdade política da população. 

Após isso, eu passei a tratar de três pontos: Comunicação, Cultura e Saúde. A conversa foi tensa em todos os momentos, sobretudo no que diz respeito à comunicação. Uma vez que eu apontei a política de comunicação como um dos grandes responsáveis para a manutenção das desigualdades raciais e do racismo no Brasil e, portanto, uma área-chave para a campanha da Copa, a presidenta evidenciou o impasse político que esse assunto encerra. Mais uma vez ficou nítido que as disputas em torno da comunicação são, de certa forma, equivalentes às verificadas no âmbito da questão fundiária e dos embates com os ruralistas e o agronegócio. Ainda que tenha sido feita a defesa de políticas de fortalecimento das mídias comunitárias e independentes, não obtivemos qualquer compromisso da presidenta a esse respeito.

Quanto à Saúde, comecei pela recapitulação do anúncio feito por ela durante a III Conapir, sobre a criação de uma instância dentro do Ministério da Saúde responsável e institucionalmente legitimada para tratar da implementação da Política Nacional de Saúde da População Negra (PNSPN). Em seguida, relatei o problema gerado pelo encaminhamento proposto pelo Ministério, que pretendia institucionalizar a instância num nível abaixo de onde ela já estava. A presidenta não disfarçou a surpresa, nem seu descontentamento sobre o ocorrido. Discordou enfaticamente da localização sugerida para a instância na hierarquia do Ministério da Saúde, ou seja, dentro de um departamento da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP); e prontificou-se a tratar do assunto com o ministro Arthur Chioro.

O último ponto foi a Cultura, pasta pela qual responde a ministra Marta Suplicy. O tema não gerou muitas discordâncias. Tão logo apresentados os dados sobre as experiências dos editais para a valorização de artistas, produtores e intelectuais negros; e sobre a mínima parcela do orçamento do Ministério da Cultura para as expressões culturais negras – que não chegam a R$ 200 milhões dos R$ 5 bilhões do orçamento geral −, a presidenta saiu na defesa do estabelecimento de cotas para a garantia de recursos para esse fim. O presidente da Fundação Cultural Palmares Hilton Cobra considerou bastante acertado o entendimento da presidenta, tomando esse como um passo importante para o promoção de mudanças efetivas nas políticas culturais do país. Tal como se fez entender, o ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência Gilberto Carvalho ficou responsável por principiar a interlocução com a ministra Marta. 

A reunião foi, então, encerrada com um convite para que o Movimento Negro seguisse em diálogo na elaboração da Campanha contra o Racismo na Copa. Após isso, os participantes avaliaram positivamente o encontro, embora tenha ficado evidente que as nossas demandas só serão encaminhadas se houver uma forte pressão externa. Em outras palavras, caso os segmentos do Movimento Negro não intensifiquem a pressão neste momento, em que se ensaia fortalecer a agenda de combate ao racismo, nossa luta corre o risco de se tornar uma peça num jogo que, por si, não tem qualquer condição de nos beneficiar efetivamente. 


Participaram da Reunião: Ana Flávia Magalhães Pinto (Pretas Candangas / Campanha A Cor da Marcha); Ana Maria Gonçalves (escritora); Arilson Ventura (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas − Conaq); Clédisson Geraldo dos Santos Júnior (Enegrecer − Coletivo Nacional de Juventude Negra); Douglas Elias Belchior (Uneafro Brasil); Edison Benedito Luiz (Conen); Emanuelle Góes (Odara – Instituto da Mulher Negra); Frei David Raimundo dos Santos (Educafro); Helcias Roberto Paulino Pereira (Agentes Pastorais Negros − APNs); Hélio Santos (Fundo Baobá para Equidade Racial); João Carlos Borges Martins (Associação Nacional dos Coletivos de Empresários e Empreendedores Afro-brasileiros − Anceabra); Manoel Júlio de Souza Vieira (Unegro); Maria Conceição Costa (Observatório Negro); Maria da Conceição Lopes Fontoura (Maria Mulher / Articulação de Mulheres Negras Brasileiras − AMNB); Maria Júlia Reis Nogueira (CUT); Paulino de Jesus Francisco Cardoso (ABPN); Valdina Pinto (Renafro – Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde), Valkíria de Sousa Silva – Kika de Bessen (Centro de Africanidade e Resistência Afro-brasileira − Cenarab).