quinta-feira, 18 de abril de 2013

Comentário I


O histórico 16 de abril de 2013


Se em alguns anos o dia 16 de abril de 2013 aparecerá nos livros como um momento importante da história do Brasil, não tenho como dizer. Faz um tempo que coleciono notícias e relatos de episódios que me parecem impactantes ao extremo, mas que nem se quer comovem muitos dos que se dedicam a falar da vida brasileira. Por isso, o mais importante é que aquela terça-feira foi um dia histórico para mim e ponto final, ou melhor, dois pontos...

A noite já ia avançada quando o Senado aprovou a proposta do Estatuto da Juventude, que trata dos direitos das pessoas com idade entre 15 e 29 anos. O texto recapitula princípios básicos defendidos no Estatuto daCriança e do Adolescente (ECA − Lei n. 8069/1990), ao reconhecer, por exemplo, que: “É obrigação do Estado garantir à pessoa jovem a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam uma existência livre, saudável e em condições de dignidade”. Por outro lado, incorpora questões mais específicas a esse segmento e outras até mesmo ausentes naquela lei, como os direitos à igualdade racial e de gênero; à sexualidade; e à representação e à participação política de jovens. Além disso, define mecanismo de promoção do acesso à cultura e ao transporte, e endossa as políticas de ação afirmativa para o ingresso no ensino superior para estudantes negros, indígenas e oriundos de escola pública.

Ocorre, porém, que, em virtude das emendas feitas no texto, que já havia passado pela Câmara dos Deputados, o projeto retorna agora a essa casa para nova apreciação... Ou seja, o que realmente temos para o momento é dizer: “Parece bom, mas ainda não vale, né?!”.

Horas antes, na contramão, chegava à Câmara o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, com sua proposta de alteração do ECA. Os papéis do governo paulista também circularam pelo Senado e chegaram às mãos tanto de Henrique Eduardo Alves quanto de Renan Calheiros. Eis os pontos centrais do documento apresentado: aumento do período de internação de adolescentes que cometerem crimes hediondos de três para oito anos; criação de unidades de atendimento especial para casos graves e para jovens que atinjam 18 anos enquanto cumprirem a pena, seguida da transferência para penitenciária aos 21 anos; e agravamento da punição para quem aliciar crianças e adolescentes para atos criminosos. A proposta foi protocolada pelo deputado Carlos Sampaio e já recebeu a definição de Projeto de Lei n. 5.385/2013.

Nas últimas semanas, Alckmin não tem economizado declarações sobre o assunto. Numa dessas, afirmou: “O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma lei que foi importante para proteger e estabelecer os direitos das crianças e dos adolescentes, mas que lamentavelmente não dá resposta para o caso do infrator reincidente e casos graves. Um crime, dois, três, quatro, não passa de três anos de internação e ainda sai com a ficha limpa”. E na terça completou: “A lei não dá respostas para casos de crimes hediondos. O que defendo são mudanças objetivas”.

Mudanças objetivas... Só se for à base do “Você finge que me engana, e eu finjo que acredito”, parodiando o “Falso amor sincero”, do mestre Nelson Sargento. Afinal, estamos falando do governador que considerou ser razoável dizer que as chacinas que vitimaram uma maioria de jovens negros no estado de São Paulo, entre o fim de 2012 e início deste ano, não deviam ser tratadas como assunto de máxima gravidade, pois o número de mortos era compatível com o tamanho da população. “Aqui [o Estado de São Paulo] é maior que a Argentina. É preciso dar a devida [dimensão] se não se cria uma situação muito injusta, quase uma campanha contra São Paulo”.

Não importava, naquele momento, reconhecer que muitos daqueles mortos não tinham qualquer vínculo com o crime ou passagem pela polícia. Na verdade, o momento serviu para alimentar as ideias de criminalização dos jovens e as propostas de recrudescimento das punições de crimes cometidos por menores de idade.

De lá para cá, os caminhos para a proposta “objetiva” de redução da maioridade estão sendo trilhados. Por enquanto, vale criticar o ECA e insistir na farsa conhecida por todos de que não se pretende promover emendas na Constituição. Também está disponível o expediente de ignorar solenemente as discussões em torno do Estatuto da Juventude, os dados dos Mapas da Violência 2012 e 2013 e acreditar na validade de uma pesquisa de opinião que entrevistou 600 pessoas num momento de comoção pública, desencadeada pelo pesar do assassinato de um jovem universitário de 19 anos por outro de quase 18 anos.

Nesse cenário, não há razão para simular a alegada sutileza do racismo brasileiro, e muitas pessoas passam a divulgar, com absoluta tranquilidade, inúmeras mensagens nas redes sociais nas quais fica evidente o quanto a sociedade brasileira alimenta a crença de que os jovens criminosos de alta periculosidade são os negros. Sendo assim, esses devem ser exemplarmente punidos, já que a pena de morte legalizada ainda não está disponível.





Se isso desse toda a medida do meu dia histórico, não haveria chance de nutrir na manhã seguinte alguma esperança de um mundo melhor. Mas, ainda ali nas dependências do Congresso Nacional, o dia também se fez com a ocupação do plenário da Câmara dos Deputados por um grupo de indígenas em protesto contra a instalação de uma comissão especial para dar encaminhamento à PEC 215. A proposta, que visa transferir para o Legislativo a competência pela demarcação de terras indígenas, quilombolas e unidades de preservação, é de uma violência indiscutível, pois implica submeter as possibilidades de acesso à terra aos desejos e caprichos de muitos parlamentares que estão comprometidos com os interesses dos latifundiários da sola do pé à ponto do fio de cabelo. 

Depois de assistir às cenas várias vezes, fui dormir com o sonho de um dia também ver jovens negros entrando no plenário da Câmara, provocando pelo menos o mesmo medo gerado pelos indígenas, dizendo que não admitem mais ser vítimas privilegiadas das mortes violentas e que não aceitam mais ser empurrados à condição de problema social, tal como na letra de Seu Jorge e Leandro Sapucahy. 



quarta-feira, 3 de abril de 2013

Entrevista com a ministra Luiza Bairros

Sobre o Brasil que temos e o Brasil que queremos



A população branca representa cerca de 30% dos cidadãos brasileiros que vivem na extrema pobreza. Os jovens brancos têm 2,5 vezes menos chances de morrer assassinados que os jovens negros. Dos setenta escritores escolhidos pelo governo brasileiro para representar o país numa famosa feira de livros na Alemanha, contamos com a presença de dois homens negros. Sendo assegurado pela Constituição o direito de opinião, um deputado pode dizer publicamente que os africanos e seus descendentes são um povo amaldiçoado por Deus. Vivemos no Brasil uma democracia, ainda que as marcas das profundas desigualdades raciais estejam espalhadas por todos os lados. Mas democracia e racismo não seriam incompatíveis?
      No último 21 de março, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) completou dez anos de existência. A princípio, a ocasião convida a falar sobre avanços e conquistas, mas ainda são muitos os problemas que precisam ser enfrentados para que a desigualdade entre negros e brancos seja superada. Nesta entrevista, a ministra Luiza Bairros faz um balanço sobre essa década de políticas de igualdade racial dentro do governo federal, identifica os maiores desafios colocados para a Secretaria e aponta algumas possibilidades para o desenvolvimento da gestão pública na área. 

***

Ana Flávia Magalhães Pinto − Para dar conta de sua missão de articuladora de políticas públicas de promoção da igualdade racial, a Seppir acaba tendo de desenvolver um trabalho educativo perante seus pares. Como a senhora avalia o reconhecimento e o impacto alcançados pela Seppir perante os demais ministérios e órgãos do governo federal após esses dez anos?
Luiza Bairros – A conquista de um espaço dentro da agenda governamental tem sido um desafio permanente desde a criação da Seppir, em 2003. Obviamente, quando nós chegamos aqui, após oito anos de existência da Secretaria, muitos ministérios já trabalhavam com a questão da igualdade racial. Entretanto, faltava um compromisso mais institucionalizado em relação ao que cada ministério deveria fazer de forma consistente dentro do governo. Isso não era consequência de um trabalho não feito até aquele momento. Na verdade, isso diz sobre a dimensão mais profunda do racismo, sobre as resistências ao combate do racismo no Brasil. Setores dentro e fora do governo percebem que o enfrentamento do racismo gira em torno de disputas de poder. Assim, deslocar determinados interesses, determinadas formas de pensar e até mesmo certos privilégios estabelecidos pelo racismo na sociedade brasileira ao longo do tempo ainda é uma tarefa extremamente difícil. De todo modo, nossa primeira iniciativa foi utilizar o processo de elaboração do Plano Plurianual 2012-2015, o PPA, como um espaço para fazer com que as iniciativas relativas à promoção da igualdade racial estivessem efetivamente inscritas nos diversos programas, indo além do programa específico de Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, que é de responsabilidade mais direta da Seppir. Hoje essa questão está inscrita em 25 dos cerca de 60 programas que o PPA contém, totalizando 121 metas, 87 iniciativas e 19 ações orçamentárias, em diferentes áreas. Então, eu considero que tivemos êxitos importantes com a elaboração do PPA. Por outro lado, ao se fazer isso, cria-se para a Seppir outra responsabilidade, no sentido de fazer com que o Plano aconteça.

AFMP − Quais órgãos têm dado respostas mais consistentes até o momento?
LB – Há um número considerável de ministérios que estão dando respostas mais consistentes neste momento. Uma coisa que nós fizemos dentro desse processo foi trazer à tona as exigências do Estatuto da Igualdade Racial. A partir dele, a promoção da igualdade racial se tornou uma obrigação do setor público. Não é algo que as pessoas podem decidir se vão ou não fazer. O Estatuto tornou isso lei. Os ministérios que respondem melhor a essa agenda são a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Ministério da Educação (MEC), e a própria Secretaria Geral, que abraçou esse trabalho pela via do Plano Juventude Viva. Mas é certo que a Seppir trabalha com mais de vinte ministérios dentro do governo. O que fica bastante evidente nesse processo é que existe uma “facilidade” maior para se trabalhar com as questões ligadas às comunidades tradicionais e, mais especificamente, aos quilombos. É dentro dessa agenda que o maior número de ministérios está efetivamente envolvido. A dificuldade se instala quando se trata de aspectos mais gerais da vida da população negra.

AFMP − Com quais órgãos o diálogo tem sido mais trabalhoso? Que desafios permanecem para que a responsabilidade pela superação das desigualdades raciais seja, de fato, assumida no cotidiano do Executivo, do Legislativo e do Judiciário?
LB − Do ponto de vista da política pública, a maior dificuldade que enfrentamos nestes últimos dois anos corresponde à efetivação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Eu vejo isso como um quebra-cabeça quase indecifrável. Isso porque a saúde da população negra teve um forte desenvolvimento nos primeiros anos da Seppir, na gestão da ministra Matilde Ribeiro. Tudo o que foi feito naquele período é que acabou mais tarde resultando na instituição da política. Diga-se de passagem, nesse aspecto, o Brasil conseguiu mais um feito inédito. Não há outro instrumento dessa natureza em qualquer outro país. Porém, nesses últimos anos, temos enfrentado muita dificuldade para trabalhar com o tema. De certa forma, perdemos um espaço anteriormente conquistado. Existe ainda o Comitê Técnico de Saúde da População Negra, que inclui várias áreas do Ministério da Saúde e conta com uma presença de especialistas. Buscamos, neste momento, a elaboração de um plano operativo, para que fique mais evidente, tanto para o Ministério da Saúde quanto para as autoridades sanitárias nos estados e nos munícipios, o que pode e deve ser feito para que a política se efetive. Não gostaria de fazer qualquer prognóstico a respeito, mas estou retomando uma conversa com a alta direção do Ministério da Saúde, no sentido de saber sobre as exatas condições para que tenhamos uma atuação efetivamente capaz de chegar à vida das pessoas que procuram os serviços de saúde. Cerca de 70% dos usuários do SUS são negros. Portanto, não há como ignorar o fato de que, para assegurar boas condições de saúde e serviços adequados, é preciso que as autoridades e os serviços de saúde incorporem as necessidades específicas desse segmento da população.

AFMP − E quanto ao Legislativo e ao Judiciário?
LB − Ao longo desses dez anos de política de igualdade racial no Brasil, muitos dos marcos se deram no âmbito da legislação brasileira. Exemplos disso são a Lei n. 10.639/2003, que modifica a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; o Estatuto da Igualdade Racial; e a Lei de Cotas. A Frente Parlamentar Mista pela Igualdade Racial e em Defesa dos Quilombolas tem sido fundamental para fazer com que as questões do nosso interesse cheguem a um bom termo dentro do Congresso. Considero que a conquista mais recente veio com a PEC do Trabalho Doméstico (PEC 66/2012). Essa emenda constitucional tem um grande impacto do ponto de vista social, especialmente no que se refere às mulheres negras. O emprego doméstico continua sendo a ocupação que individualmente absorve o maior número de mulheres. Mas, infelizmente, também existe o lado B do trabalho do Legislativo, que está relacionado a um grande número de projetos de lei que tramitam no Congresso a fim de retirar direitos conquistados. Quanto ao Judiciário, a declaração unânime do Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade das ações afirmativas serviu para pavimentar o caminho para a aprovação da Lei de Cotas e a importância do fato precisa influenciar a implementação.

AFMP − Sabemos que a existência da Seppir por si só não garante que os próximos governos mantenham a promoção da igualdade racial como uma política de Estado. Por outro lado, a manutenção e a ampliação dessa e outras conquistas dependem da atuação dos sujeitos políticos que estão fora do institucional. Como têm se dado o diálogo e mesmo os embates com os cidadãos comuns e os movimentos sociais?
LB – O ambiente dos movimentos negros passou por mudanças consideráveis nos últimos anos. Partiu-se de um contexto onde predominavam as entidades negras de caráter geral e se chegou a esse momento que vivemos hoje com mais intensidade, no qual os diversos sujeitos negros foram acomodando as suas respectivas organizações políticas de diferentes maneiras. O que chamamos de Movimento Negro é algo formado por movimentos quilombolas, movimentos de afirmação da ancestralidade africana, movimento de jovens, de mulheres e até mesmo profissionais, como é o caso dos pesquisadores negros, dos especialistas em saúde, dos jornalistas e por aí vai. Há atualmente um quadro muito mais complexo, à medida que essas diversas identidades vão se organizando politicamente. Da parte da Seppir, isso implica um esforço muito maior de diálogo com cada um desses setores, a depender do aspecto da política pública que esteja sendo tratado. Então, por exemplo, o Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana foi discutido, fundamentalmente, com os setores que fazem parte dessa discussão, ainda que isso envolva as muitas comunidades existentes. Há uma questão bastante peculiar quando se trata das comunidades de matriz africana. Cada comunidade é em si um universo, e, nesse sentido, você não pode trabalhar com o pressuposto de que o diálogo com representações seja suficiente. No caso das mulheres, isso exigiu uma mobilização das organizações de mulheres negras para que dialogassem conosco sobre o que fazer, como fazer, etc. A mesma dinâmica se deu em relação ao Plano Juventude Viva. Nesse caso, houve uma mobilização ainda maior, porque, dentro do movimento de juventude, você não pode trabalhar com a categoria “juventude negra” como algo uniforme. Há aqueles ligados ao movimento hip hop, aos grupos formados dentro das universidades e por aí vai. Então, tem sido um exercício bastante desafiador mobilizar esses diferentes setores a cada momento de organização das nossas iniciativas. Acredito que, por um lado, isso dá uma certeza maior de que estamos conseguindo conversar com muitos setores da comunidade negra que estão organizados politicamente. Por outro lado, também cria certa insatisfação dentro do movimento social – algo que sempre vai existir −, porque nem todas as pessoas ou organizações podem ser mobilizadas nesse processo, nem todas podem ser ouvidas ao mesmo tempo.

AFMP – Essa afirmação das múltiplas faces do movimento negro, por um lado, fortalece a imagem de que a experiência da população negra é, de fato, nacional e diversa, mas, por outro lado, pode gerar um enfraquecimento da capacidade de pressão perante o Estado?
LB − Eu não diria que necessariamente enfraquece. É uma situação extremamente complexa, ainda mais porque, do ponto de vista histórico, isso tem se dado há um tempo bastante curto para saber aonde vai nos levar. A questão é que, se, por um lado, deixa mais visíveis as necessidades apresentadas pela comunidade negra, por outro, cria uma maior dificuldade do ponto de vista da elaboração da política pública. Eu digo isso pelo seguinte: a política pública é tão mais eficiente quanto maior for a sua capacidade de atender a um grande número de pessoas. Se você observar dentro do governo quais são as políticas de maior sucesso, verá que são exatamente aquelas que têm escala. Se você fragmenta a demanda, perde essa possibilidade de atingir um grande número de pessoas e perde também em capacidade de negociar a existência da política dentro do governo. No nosso caso que trabalhamos com a população negra no âmbito do governo federal, estamos lidando com mais de 50% da população brasileira. Então, não há como alcançar resultados pensando o tempo todo em segmentos específicos. Isso é muito importante para nós entendermos a forma como a Seppir tem procurado trabalhar. Incorporamos essa possibilidade de responder a demandas mais segmentadas, sem perder de vista a possibilidade de trabalhar com a noção das ações afirmativas para a população negra, num espectro é mais amplo. Teoricamente, podem participar das ações afirmativas tanto os jovens oriundos de comunidades de terreiro quanto de quilombos, do movimento hip hop, etc. O mesmo se dá em relação às mulheres.

AFMP − E de que forma a criação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), que está em fase de consulta pública, pode colaborar para esse fortalecimento institucional?
LB − O Sinapir faz parte de algo que tem uma importância muito grande para nós, que é a possibilidade de estimular as políticas públicas dentro do governo e, ao mesmo tempo, trabalhar com a gestão dessas ações. O Sinapir é uma oportunidade trazida pelo Estatuto da Igualdade Racial, em seu artigo 5º. Considero que seja uma das melhores coisas que existe dentro do Estatuto, na medida em que esse instrumento permite estabelecer competências para a União, os estados e os municípios. Possibilita, assim, o estabelecimento de patamares mínimos de organização, necessários para fazer com que a política pública realmente aconteça. Por uma série de condições e circunstâncias, criou-se no Brasil a impressão de que a única responsável pela política de igualdade racial é a Seppir. Isso precisa ser mudado, porque existem obrigações que estão colocadas para os outros entes, como os estados e os municípios. Nesse sentido, em primeiro lugar, temos procurado dotar a própria Seppir de um ambiente administrativo e financeiro um pouco mais sólido, para poder aumentar o número de convênios estabelecidos com os estados e os municípios e dar a esses governos que atuam localmente as condições necessárias para o funcionamento de órgãos promoção da igualdade racial. Acontece que tirar a ênfase do governo federal e dividir essa responsabilidade com outros implica uma mudança de ênfase, e, não por acaso, isso ainda sofre certa resistência. Com raríssimas exceções, como naqueles poucos estados onde já temos secretarias de igualdade racial, isso caminha com mais facilidade. Nos outros, onde o órgão de igualdade racial é um departamento, uma superintendência ou uma coordenadoria, obviamente há mais dificuldades, porque esses órgãos não têm autonomia administrativa e financeira. Mas isso é parte de um processo. O que nós temos que fazer é criar condições para se trilhar esse caminho, e acho que temos feito até bem. Para você ter uma dimensão da dificuldade, em quase dois anos com esse trabalho, firmamos convênios com onze estados exatamente na direção da implantação do Sinapir e esperamos fechar com o restante dos estados brasileiros ao longo de 2013.

AFMP − O Sinapir pode ser uma saída para casos como o da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, promulgada em 2006, ratificada no Estatuto, organizada em pleno acordo com os princípios do SUS, mas que não se tornou uma prioridade do Ministério da Saúde?
LB − É nisso que estamos apostando. Considero que o caso específico da política de saúde, nesse momento, está carecendo de uma avaliação da nossa parte sobre o que foram esses últimos anos e como nós entramos nessa situação em que parece que as coisas não estão efetivamente evoluindo. Digo isso porque, se, por um lado, não temos a resposta desejada do ponto de vista das autoridades de saúde, por outro, existe uma mobilização da sociedade civil que continua muito forte, que continua recebendo apoio, por exemplo, da Seppir e de outros órgãos da área. O próprio Sistema Nações Unidas no Brasil continua dando um forte apoio a essa agenda. Agora, a mobilização dos profissionais e dos especialistas de saúde é algo muito bom, muito importante, mas não é suficiente. Quer dizer, nós só vamos chegar com as noções que a Política de Saúde da População Negra traz aos serviços de saúde se as secretarias e o Ministério se propuserem efetivamente a fazer disso um eixo importante da sua atuação.

AFMP − Ainda sobre as possibilidades de uma pessoa negra viver ou morrer no Brasil, a senhora falou há pouco sobre o Plano Juventude Viva, lançado em novembro passado. Os números das mortes entre a juventude são estarrecedores, especialmente no caso dos jovens do sexo masculino. A interrupção da vida dessas pessoas de 15 a 29 anos acontece muitas vezes em contextos de violência, sendo os negros duas vezes e meia mais atingidos que os brancos, segundo o Mapada Violência 2012. Se, por um lado, isso tem servido como desculpa para que essa tragédia não seja assim assumida pela sociedade em geral, por outro, tem levado grupos de movimento negro e direitos humanos a denunciar a ocorrência de um genocídio da juventude negra no país. Como esse Plano está organizado, quais são e como se pretende atingir as metas estabelecidas?
LB − Eu considero que o Plano Juventude Viva é uma conquista muito importante, porque, ao instituí-lo, o governo brasileiro reconheceu que o segmento da população jovem vive uma situação absolutamente insustentável; e reconheceu também o peso do racismo na produção dessas taxas tão perversas de homicídio entre jovens. Isso foi um patamar importante que conseguimos atingir. O outro lado é como você organiza a ação governamental, tendo como foco a diminuição dessas taxas de homicídio. Esse é o grande desafio do Plano Juventude Viva. O homicídio não se relaciona a apenas um aspecto da vida ou da organização social, mas se trata de um fenômeno influenciado por múltiplos fatores. É por isso que oito ministérios operam dentro desse Plano, para tratar de diferentes questões. A primeira delas diz respeito ao próprio apoio e ao fomento do processo de organização dos jovens. A educação é outro ponto: como que você opera com a educação nesses territórios onde as taxas de homicídio são as mais altas? Com isso, a cultura se torna uma linha de ação fundamental. Todos nós sabemos o quanto a cultura é um dado extremamente importante da expressão juvenil. Já as questões da justiça e da segurança pública são trabalhadas em dois aspectos. O primeiro está focado nos agentes públicos que operam na questão da segurança e que o fazem a partir de valores e determinadas ênfases que têm, ao longo do tempo, contribuído para criminalizar a juventude negra. Nesse ponto, são trabalhadas as questões ligadas ao racismo institucional propriamente. No que se refere aos poderes de justiça, trata-se de criar possibilidades e redes ali dentro para que essas mortes de jovens não sejam naturalizadas, e sim efetivamente investigadas e tratadas como uma agressão à sociedade como um todo. Outro aspecto está ligado à assistência social propriamente dita. A proposta é utilizar essa imensa rede da política de desenvolvimento social existente hoje no Brasil − com centros de referência instalados até mesmo nos lugares mais remotos do país – para identificar onde estão esses jovens, em que condições, e definir o tipo de encaminhamento a ser dado. Tendo em vista a delicadeza e o ineditismo do Plano, nós, dentro do governo, tivemos que tomar uma decisão que considero extremamente correta, que foi a de fazer primeiro uma experiência piloto. Isso causou muita insatisfação nas organizações de jovens que acompanharam o processo de elaboração do Plano. Eu tenho muita consciência de que é uma questão que tem uma urgência muito grande, mas o grau de complexidade dela não nos permite trabalhar ao mesmo tempo em todos os lugares neste primeiro momento. Para você ter uma ideia, o Plano priorizou 132 municípios no Brasil, que são responsáveis por 70% das mortes registradas. A partir da primeira experiência desenvolvida em Alagoas, esperamos fazer o trabalho avançar com mais segurança em outros estados agora em 2013. Outra questão a ser destacada dentro dessa malha de iniciativas e ações previstas no Plano é a própria presença das organizações do movimento negro. É necessário especificar o movimento negro, porque ele é o setor que, de certa forma, desenvolveu ao longo do tempo formas de se trabalhar com jovens a partir de elementos que são muito próximos e próprios da cultura negra no Brasil. Os terreiros de candomblé, por exemplo, independentemente do Plano, sempre fizeram um trabalho de cuidado com a juventude nessas áreas. Existem ainda os milhares de mestres de capoeira, pelos quais eu tenho uma tremenda admiração, que há tempos fazem um trabalho absolutamente em cima de sua própria consciência, pela sua própria vontade de reunir crianças e jovens em bairros de maioria negra e que, com isso, também transmitem valores. Eu acredito que a criação de um sentimento de valorização da vida é uma grande parte do desafio que nós temos pela frente, para além da chegada da ação governamental, nesses territórios onde as taxas de homicídio são altas. Porque foi isso, efetivamente, o que se perdeu ao longo do tempo. Esse foi um feito do racismo. Na medida em que ele desumaniza, ele também acaba convencendo as pessoas de que a vida de uma pessoa negra tem menos valia que a vida de qualquer outro ser humano.

AFMP – No processo de expansão, o Plano Juventude Viva vai priorizar a partir de 2013 os estados de São Paulo, Espírito Santo, Paraíba, Bahia e o Distrito Federal. Por que o Rio de Janeiro não entra?
LB − Não é que o Rio de Janeiro não vá estar. Inclusive há, da parte do governo do estado do Rio de Janeiro, um interesse bastante grande de entrar no programa em seguida. E, obviamente, embora o Plano tenha essas prioridades, não haverá qualquer impedimento à adesão daqueles estados ou municípios que queiram participar e desenvolver ações. De novo, é como a política pública funciona. Eu compartilho da opinião de que qualquer taxa de homicídio entre jovens será sempre muito alta, porque não é para matar jovens que nós nos organizamos em sociedade. Mas o fato é que o Rio de Janeiro não responde pelas mais altas taxas de mortalidade de jovem registradas no Brasil. As taxas mais altas se localizam, fundamentalmente, em estados do Nordeste. Entre esses, os que mais se destacam são Alagoas e Paraíba, seguidos pelo Espírito Santo, no Sudeste. A Bahia também está entre as maiores, mas não está no topo. Isso inclusive ajuda a dar a dimensão da dramaticidade dessa questão. Há cidades no Brasil onde morrem dez, doze jovens por final de semana. Estamos lidando com um problema que não dá trégua em momento algum. Quer dizer, quanto mais nós demorarmos em fazer acontecer essas ações, um número muito maior de pessoas vai morrer. Isso é um aspecto dramático e permanente que tem que ser inclusive incorporado por quem trabalha com a questão. Ao mesmo tempo, você não pode deixar que essa realidade que o tempo todo lhe diz que o que está sendo feito é pouco para a dimensão do problema lhe paralise.

AFMP − Recentemente, as comunidades quilombolas tiveram um ganho com a expansão do Programa Brasil Quilombola por meio da inclusão de ações do Plano Brasil Sem Miséria. É certo que essa ampliação contribuiu para o fortalecimento da agenda quilombola no governo. Porém, a situação das comunidades quilombolas segue bastante frágil. Das cerca de três mil comunidades levantadas pelo Incra, 1834 foram certificadas e apenas 193 foram tituladas. Ao mesmo tempo, assiste-se ao desrespeito de direitos conquistados, como tem se dado nas ações da Marinha contra os Quilombos da Marambaia (RJ) e do Rio dos Macacos (BA). Sem falar do risco que se corre com a PEC 215. Como a senhora equaciona esses diferentes aspectos da situação no que diz respeito às possibilidades da gestão pública para a promoção do acesso à terra?
LB − Não existe uma questão relativa à população negra no Brasil que não seja complexa. Tudo isso se dá no contexto de uma sociedade que passou a maior parte da sua história negando aos negros o acesso a quase tudo. Quando se trata da questão da terra então, isso se torna ainda muito mais complicado. Nós vivemos num país em que a questão da terra foi constituída para privilegiar determinados grupos e isso não mudou. Hoje todas as disputas e os conflitos que se constroem em torno da questão fundiária têm sempre um potencial muito grande de que o lado mais fraco saia perdendo. Então, a emergência das comunidades quilombolas como um ator político importante ou como sujeitos de direito no Brasil é recente. Uma coisa é o fato de muitas delas existirem há centenas de anos. Outra é o momento em que isso se constituiu politicamente por força da ação do Movimento Negro com a elaboração da Constituição Federal. Então, o que está sendo dito agora para o Brasil é o seguinte: Os negros, que foram escravizados durante mais de trezentos anos, que passaram por um processo de abolição pelo qual a possibilidade de reparação da escravidão foi absolutamente descartada, estão reivindicando um direito originário, vamos dizer assim. Colocar isso na pauta da sociedade é você provocar uma inversão de prioridades que essa sociedade tinha estabelecido. Havia até aquele momento de 1988 uma ideia de que o que existia de negro reivindicando direito no Brasil estava no urbano. Essa questão rural não tinha a materialidade que ganhou com a emergência do conceito de comunidades quilombolas. É com isso que nós temos lutado até hoje, ou seja, pelo estabelecimento dessas comunidades como mais um sujeito de direitos na sociedade brasileira. E isso a partir de uma concepção extremamente complicada de ser entendida numa sociedade capitalista como a nossa. O que se reivindica para as comunidades quilombolas não é o mesmo tipo de reivindicação que se tem, por exemplo, para os agricultores familiares. Enquanto entre esses a prioridade é a constituição de propriedades individuais, o tipo de propriedade reivindicada pelos quilombolas é a coletiva. Como você deve estar percebendo, eu não trato nenhuma dessas questões que nos dizem respeito como mais uma questão para ser resolvida pela ação do governo, porque é mais do que isso queremos. É mais do que isso que nós buscamos fazer. Na verdade, você está querendo o tempo todo, não importa a questão que você esteja tratando, reinserir o negro na formação econômica, política, social e cultural do Brasil. Porque ao longo do tempo, nós fomos, de um modo ou e outro, tratados como sendo periféricos àquilo que interessa ao Brasil real. E esse Brasil real foi construído como sendo branco, fundamentalmente. Então, aquilo que se busca, do ponto de vista da ação governamental, é o aspecto material da nossa vida em sociedade, mas o que está em jogo de fato é como você reverte determinadas imagens e como, principalmente, você cria significados novos para essa presença tão forte da população negra na sociedade brasileira.

AFMP − A proposta de desenvolvimento com inclusão social fundamenta programas de assistência social do governo, como o Bolsa Família (PBF). Ao focar nos mais pobres, essas políticas universais chegam a atingir a população negra. De acordo com o Censo de 2010, 70% das pessoas vivendo com renda igual ou menor a R$ 70 eram negras. A complementação de R$ 23,9 bilhões do PBF iniciada em março, portanto, incidirá neste cenário. A dúvida que fica é: Esse modelo de políticas universais de incremento da renda consegue atingir efetivamente a desigualdade entre negros e brancos?
LB − A desigualdade eu não afirmaria. Esse modelo não é capaz de ter um efeito mais profundo na desigualdade, mas tem uma capacidade de pelo menos tirar esse número tão expressivo de pessoas negras da situação de extrema pobreza. Qual é a vantagem que nós temos nisso? O Ministério do Desenvolvimento Social é um dos que têm um bom entendimento sobre o significado e esse peso da população negra dentro da população extremamente pobre. Até por isso, houve, no final de 2012, esse casamento entre o programa Brasil Quilombola e o Programa Brasil Sem Miséria. Isso se deu exatamente em decorrência da compreensão de que existe uma dificuldade maior para que a população negra receba os benefícios da política pública, por conta dos obstáculos colocados pelo racismo, por conta de condições históricas. Assim, o MDS tem desenvolvido um bom trabalho naquilo que se refere às comunidades tradicionais e às comunidades urbanas, no sentido de, num primeiro momento, retirar as pessoas negras dessa situação tão desvantajosa. Agora, os dados também demonstram que as pessoas negras partem de um patamar de desvantagens tão grande que esse movimento acaba não sendo o suficiente para alterar significativamente a desigualdade racial. Portanto, é preciso entrar com ações mais dirigidas para a população negra de uma maneira mais dirigida. E isso tem a ver com a ação de outros ministérios. Isso teria que ter a ver com o Ministério do Trabalho e, principalmente, com o Ministério da Educação. Precisamos, por exemplo, ir além da garantia da frequência escolar e promover uma intervenção na escola propriamente dita. Porque as nossas taxas de evasão continuam sendo as maiores. Nossa defasagem idade-série continua elevada. É preciso provocar outro nível de intervenção do ponto de vista da política educacional.

AFMP − A cultura é outro terreno instável. No ano passado, o Akoben − Coletivo de Artistas e Produtores Negros pressionou o Ministério da Cultura (MinC) em defesa de editais e linhas de financiamento para incentivo à cultura e às artes negras, e também aos artistas negros. Foram, então, abertos cinco editais do MinC diretamente voltados para essas questões. Enquanto isso, os setenta escritores escolhidos pelo governo semanas atrás para representar o Brasil na Feira do Livro de Frankfurt são quase todos brancos. Como interpretar e lidar com o significado desses editais dentro da dinâmica mais ampla da cultura no Brasil?
LB – A situação de hegemonia cultural não vai ser mudada pela via de editais, é óbvio. Mas, em primeiro lugar, eu vejo os editais como uma iniciativa extremamente importante. Foi muito bom que aqui na Seppir nós tivéssemos amadurecido essa ideia, a ponto de fazer com que, para o Ministério da Cultura, ela parecesse a solução mais natural naquele momento. Isso foi ótimo. Criou-se, assim, mais um espaço para, a partir do governo, estabelecer o seguinte: Não é possível que continuemos pensando a cultura brasileira sem valorizar todas as matrizes que a constituem. Então, nesse ponto nós já chegamos. Agora, essa ainda é uma ação na epiderme da questão. A quebra da hegemonia europeia na noção de cultura no Brasil vai depender de lutas que são travadas no interior da sociedade como um todo. São essas lutas e conflitos que criam as condições para que, dentro da ação governamental, se avance cada vez mais em termos de respostas. Eu acho que é isso que está dado. Do ponto de vista disso do que eu chamei de mais epidérmico na política pública, do que a política pública é capaz nesse momento, a indicação dos 70 escritores, na maioria homens brancos, exceto por dois negros e um indígena, para representar o Brasil na Feria do Livro de Frankfurt, é sintomático. Na medida em que esse processo dos editais não foi o suficiente para fazer com que a questão ganhe mais profundidade, os escritores e as escritoras negras ficam sendo, provavelmente, vistos como alheios a outras iniciativas que podem ser tomadas. Isso, entretanto, não apaga o fato muito concreto de que nós temos no Brasil mulheres e homens negros, autores, com uma produção literária de extrema qualidade. Isso não muda. Em cima dessa constatação de que temos, cabe a nós da Seppir – vamos ver até que ponto o Ministério da Cultura nos apoia nisso − criar as condições para reverter esse tipo de decisão, que ignora a existência de uma literatura afro-brasileira ou negra no país. Tanto ela existe que tem sido motivo de obras muito importantes. Recentemente, a Universidade Federal de Minas Gerais produziu um alentadíssimo trabalho falando da história da literatura afro-brasileira. É comum pensar essa presença negra na cultura quando se trata das expressões mais tradicionais da cultura. A batalha que está posta é o reconhecimento dessa participação negra no mundo das artes. É no mundo das artes que sempre se considerou que o produtor ou o autor branco teria a preferência ou a predominância. Eu não diria que essa é uma batalha que está começando, porque ela já estava colocada na sociedade. Mas, no momento, ela está começando a penetrar as estruturas governamentais; e o tempo é que vai dizer até onde nós seremos capazes de chegar.

AFMP – O interessante é que isso acontece num momento também de expansão da presença negra em outros espaços de produção da cultura hegemônica, que são as universidades, graças às políticas de ação afirmativas de acesso a estudantes negros. Só que as contrarrespostas são também rápidas, a exemplo do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (Pimesp). Qual a sua avaliação a respeito?
LB − O que logo me chama a atenção é que o Pimesp pretende ser uma resposta à questão das ações afirmativas construída em cima dos elementos que os conservadores sempre usaram para negá-las. O que organiza a proposta do Pimesp é um determinado conceito de meritocracia que os críticos das ações afirmativas sempre utilizaram para poder na prática dizer que nós negros somos pessoas menos dotadas que a média da população branca. Para mim, o problema central do Pimesp é esse. Ele diz que está querendo incluir, mas não abre mão daquilo que o racismo afirma sobre a nossa inferioridade. Por isso é que tem sido tão difícil esse diálogo dos propositores com setores de Movimento Negro que se sentiram tão legitimamente ofendidos até pelo caráter da proposta. Ao mesmo tempo em que aparece o Pimesp, você tem essa afirmação vinda do deputado que assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos, dizendo que os negros são amaldiçoados. Ou seja, o debate público sobre essa questão da inferioridade congênita dos negros está novamente colocado. Isso que parecia ser uma questão absolutamente superada ressurge justamente nessa conjuntura em que as pessoas negras procuram cada vez mais avançar do ponto de vista do exercício de direitos. Então, é sempre bom estar alerta. Até mesmo agora nesse contexto de discussão dos dez anos da Seppir, eu fiquei durante algum tempo brigando com os termos, com as palavras. Como caracterizar esse momento, o que existe? É pertinente o uso de palavras como “conquista” e “avanço”? Porque, nesse ponto em que estamos, tanto a conquista quanto o avanço são relativos, pois não estão consolidados. Ao mesmo tempo em que existe certo progresso no interior da sociedade, você também se vê o tempo todo cercado por essas forças que buscam minar o caminho que se está percorrendo. Assim, eu tenho usado os termos “conquista” e “avanço”, mas eu sei que isso é algo que tem que ser relativizado.

AFMP − Seguindo esse raciocínio, não vamos perder a oportunidade de abordar a questão da Lei n. 10.639, que também completa dez anos. Tendo em vista os esforços quase sempre espontâneos para fazer essa lei valer e as reincidentes queixas de que a coisa não está acontecendo como deveria, o que dizer sobre a experiência acumulada e os caminhos da educação antirracista no Brasil?
LB − O que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a partir da Lei n. 10.639, modifica, ou melhor, pede para o Brasil modificar é a maneira como ele equilibra as matrizes culturais que formaram o país. Ela está dizendo que a matriz africana tem de ser equiparada à europeia. Só que ninguém pode achar que uma mudança de perspectiva das autoridades educacionais vai fazer isso vai acontecer imediatamente. Na verdade, implementar ou não implementar a lei remete a uma disputa do ponto de vista de valores e de significados profundos da formação do Brasil. É isso que a Lei está pedindo. Quando eu olho por esse ponto de vista, eu acho até que avançou. Pensando por esse lado, não era para ter acontecido absolutamente nada. Mas avançou de que maneira? De uma maneira que eu considero absolutamente positiva. Professores e professoras pelo Brasil inteiro tomaram essa tarefa nas mãos e utilizaram suas possibilidades de autonomia dentro da sala de aula para fazer com que isso acontecesse. Muitas vezes de uma maneira não tão aprofundada quanto se gostaria, talvez com base em materiais mais ou menos improvisados, mas fizeram. Tomaram essa atitude política de fazer isso chegar às salas de aula. Esses exemplos podem ser encontrados pelo Brasil inteiro. Muitas dessas experiências são legitimadas no nível da escola e não necessariamente no nível das secretarias municipais e estaduais, embora, algumas delas tenham, ainda que timidamente, se aproximado dessa possibilidade. Para mim, o maior exemplo entre todos do Brasil é o do estado do Rio de Janeiro. Existe ali um número expressivo de professoras negras que têm disseminado inclusive pelo interior ações ligadas à Lei n. 10.639. Universidades, como a Universidade Federal Fluminense (UFF), têm oferecido cursos para as professoras no intuito de facilitar esse processo. Uma experiência que eu considero muito importante, e na qual a Seppir e o MEC têm participação, é o projeto A Cor da Cultura, realizado por um grupo grande de parceiros e executado pela Fundação Roberto Marinho, com apoio e recursos da Petrobras. O projeto conseguiu um feito louvável que foi a produção de materiais didáticos e paradidáticos, utilizados como uma forma de ancorar a formação de professores e fazer com que a discussão chegue às salas de aula. Com tudo isso, eu não estou dizendo que não precisamos das secretarias municipais e estaduais. De maneira nenhuma. Esses são os atores que estão faltando. Mas, pelo que tudo indica, vão ser levados a isso por uma pressão que vem debaixo, por uma pressão que vem das escolas.

AFMP − Para finalizar, o ano de 2013 marca a entrada no terceiro ano da sua gestão na Seppir. Em linhas gerais, a senhora promoveu uma reorganização da equipe, investiu no diálogo institucional e no estabelecimento de mecanismos de acompanhamento das ações voltadas à promoção da igualdade racial. Se, por um lado, foi dada continuação ao trabalho pautado no princípio da transversalidade; por outro, a senhora, que vem de uma conhecida trajetória no Movimento Negro, buscou instituir novas práticas políticas e de gestão na Secretaria. O que fundamenta essa proposta de trabalho?
LB – O primeiro ponto foi olhar para a Seppir também como um espaço a ser estruturado. Sem estrutura, a Seppir não consegue trabalhar para fora. E a Secretaria precisava muito de estruturação. Para você ter uma ideia, ela ainda depende administrativamente do Ministério da Justiça. Das secretarias que são contemporâneas do primeiro do governo do ex-presidente Lula, SDH, SPM e Seppir, a Seppir é a que ficou mais atrasada do ponto de vista da sua organização interna e da possibilidade de trazer aqui para dentro aquelas unidades e mecanismos necessários para se trabalhar com mais agilidade. O nosso objetivo é poder chegar em 2014 em condições de nos tornarmos autônomos em relação ao Ministério da Justiça. Além disso, é preciso ter um núcleo de convênios com tamanho compatível para se estabelecer parcerias e colaborações com estados, municípios e entidades da sociedade civil. Temos feito um esforço grande para promover essa ampliação, porque senão a Secretaria não consegue agir, não consegue atuar. Há um problema crônico aqui dentro, que é a questão da execução orçamentária. A Seppir é um dos menores orçamentos da Esplanada, sempre foi. Continua tendo um dos menores orçamentos porque não criou uma estrutura interna ágil o suficiente para fazer com que esses recursos sejam efetivamente aplicados. Então, eu concordo com todo esse debate de que o orçamento da Seppir precisa aumentar, mas junto com isso é preciso aumentar a estrutura. Sem a estrutura para aplicar o recurso, não adianta incrementar o orçamento. Nós temos feito um investimento grande nesse sentido, ainda que esse esforço aconteça numa conjuntura relativamente desfavorável. Todo o mundo sabe que nós temos sofrido contingenciamentos ao longo do tempo, fruto de várias decisões tomadas pelo governo no sentido de proteger a economia do país contra os efeitos das crises, etc. Mas essa é uma questão extremamente importante para nós. A Seppir nunca teve, por exemplo, um Plano Diretor de Tecnologia da Informação. Esse foi outro investimento que fizemos. A partir daí, estabelecemos as prioridades de tudo aquilo que é necessário em termos de tecnologia da informação, inclusive a implantação de um sistema de monitoramento das políticas públicas. Sem essa base, esse pressuposto de que a Seppir tem que monitorar política pública permanece apenas uma ideia. Para fazer isso, são necessários recursos humanos especializados, e o Ministério nem sempre se num constituiu um atrativo para essa mão de obra especializada. Mas, de todo modo, conseguimos atrair profissionais que acreditaram nessa possibilidade do Ministério. Então, mesmo com dificuldades, nós investimos nessa direção. Essa dimensão mais estrutural da Seppir foi o que tomou um grande tempo nosso aqui, pois entendemos ser isso fundamental para garantir possibilidades de fazer acontecer o nosso trabalho de articulação aqui e o nosso trabalho de parceria com estados, municípios e outras entidades. No meio disso tudo, lançamos a nossa Campanha Igualdade Racial é para Valer e tivemos a adesão de novos atores a essa agenda. Nesse caso, destacam-se as empresas públicas que já vinham num processo de sensibilização por conta do Programa de Equidade de Raça e Gênero. Nós fizemos um trabalho que eu considero muito significativo. Foram oficinas estruturadas voltadas para gestores e funcionários de empresas públicas. Acredito que isso foi um ponto de partida importante para que em breve se estabeleçam nessas empresas ações bem direcionadas para a agenda de promoção da igualdade racial. Eu acho que não respondi exatamente a sua pergunta, mas esses são os pontos que considero fundamentais no trabalho desenvolvido até aqui.